Só a violência salva
Eu estava no Ensino Médio quando soube, pela primeira vez, de um conflito racial de grande proporção. Meu irmão mais velho recebeu algumas fitas cassete de um amigo que estava em Los Angeles e contava da absolvição de três policiais (dois brancos e um hispânico), que espancaram o motorista negro Rodney King em 1992. As imagens do conflito apareciam na TV aberta e eram chocantes. Uma massa de pessoas enfurecidas quebravam o que viam pela frente. Os prejuízos materiais chegaram a um bilhão de dólares. O prejuízo na comunidade negra persiste até hoje.
Malcolm X me foi apresentado num intervalo da aula, numa conversa informal. O carinha logo me passou umas cópias amareladas e eu devorei a leitura. Finalmente, encontrei o caminho e a vazão para a inadequação que eu sentia com as outras pessoas e com o mundo. “Os brancos são seres humanos na medida em que isto for confirmado em suas atitudes em relação aos negros”. Essa frase foi minha crença pessoal por um bom tempo.
Mas havia outros nomes e outras leituras, e Martin Luther King Jr chegou chegando. Dialogando com minha fé em Jesus de Nazaré, a crença da não-violência me arrebatou. Construía mentalmente a cidade que eu queria viver. Mentalmente, criava possibilidades de fugir da pobreza, do crime. Era como se Malcolm X fechasse meus punhos e Martin Luther King me convidasse para abrir as mãos.
Sem saber como me manter vivo num mundo brutal com gente como eu. Fui escapando. Luther King me pedindo paz e Malcolm X exigindo reparação. Entre um e outro, metia um “Sermão da montanha” quando cabia. Mas perguntas dentro de mim permaneciam sem respostas. Como transformar um mundo dominado por brancos que me querem preso ou morto? Como escapar do destino colonial, do silenciamento programático ou da exposição em praça pública (o Pelourinho hoje é virtual)?
Aos 40 e tantos, me encontrei com Frantz Fanon, um homem zangado por dentro e por fora. Me convidando para olhar, entre outras coisas, para a violência revolucionária. Se a violência do colonizador vem de fora, cria internamente o colonizado. A violência como um duplo. E ao criar o colonizado, o faz na “descivilização” do outro. Como se libertar então para que eu e você sejamos nós mesmos, sem o espelho espectral do colonialismo? Fanon responde: “Para o colonizado, a vida só pode surgir do cadáver em decomposição do colono. (…) Entre a violência colonial e a violência pacífica na qual está mergulhado o mundo contemporâneo, há uma espécie de correspondência cúmplice, uma homogeneidade. (Os condenados da terra).”
O colonialismo foi que me ensinou que só há uma linguagem, um poder, um caminho: a violência. Inverter a lógica normal da colônia é a cura e é na violência que o colonizado se descobre potente e se liberta. Um estupor de loucura a romper o normal que nos mata, silencia e nos prende à condição de não-gente. Um poder só respeita outro poder. O colonialismo nos quer quietos, calados e pacificados. A pomba da paz levou dois tiros no peito.