Bemdito

O espaço do ativismo político nos Jogos Olímpicos

Neutralidade aplicada aos Jogos Olímpicos, pressuposta para a manutenção do respeito, da harmonia e da fraternidade, não é apolítica
POR Desirée Cavalcante
Tommie Smith and John Carlos, gold and bronze medalists in the 200-meter run at the 1968 Olympic Games, engage in a victory stand protest against unfair treatment of blacks in the United States. With heads lowered and black-gloved fists raised in the black power salute, they refuse to recognize the American flag and national anthem. Australian Peter Norman is the silver medalist.

A despeito de a abertura dos Jogos Olímpicos de Tóquio estar programada apenas para a próxima sexta-feira, dia 23 de julho, o evento já trouxe a público discussões que apontam a reestruturação da competição tradicional. 

A própria decisão de promover os jogos, sem a presença de torcedores, em meio à pandemia, com o Japão vivenciando um estado de emergência e com parte significativa da população não vacinada e contrária à realização do evento, traduz as peculiaridades desta edição.

Aliado a isso, o mundo vive um período de fervor de protestos e discussões sociais que, dificilmente, serão silenciadas durante um acontecimento que possui atenção global. 

O maior evento esportivo internacional, no entanto, busca manter o ideal de neutralidade política sob o argumento de que este seria o único meio de reunir representantes dos cinco continentes, com base em valores de fraternidade, respeito e excelência. 

Um elemento central dessa busca de neutralidade é incorporado na Regra 50 da Carta Olímpica, segundo a qual não é permitido nenhum tipo de demonstração ou propaganda política, religiosa ou racial nos parques Olímpicos, locais de competição ou outras áreas. A crença, fortemente defendida pelo Comitê Olímpico Internacional (COI), é de que apenas se mantendo neutro os Jogos conseguiriam sobreviver ao tempo.

Historicamente, no entanto, as manifestações políticas de governos, atletas ou torcedores nunca estiveram muito distantes das Olimpíadas. Na realidade, seria surpreendente que as semanas de holofotes internacionais nunca tivessem sido utilizadas para mobilizar ideias de apoio ou protestos. 

São exemplos conhecidos os dos Jogos de Berlim de 1936, quando atletas judeus foram vetados da competição; os boicotes aos Jogos de Melbourne de 1956, de Moscou de 1980 e de Los Angeles de 1984; os protestos no pódio contra a discriminação racial, nos Jogos do México de 1968, realizados por Tommie Smith e John Carlos, os quais foram punidos com a pena de expulsão. Além de inúmeros outros com maior ou menor impacto, como a proibição da África do Sul de participar dos jogos, em sanção ao apartheid, o que durou 32 anos; e, nos Jogos do Rio de 2016, a retirada de torcedores dos estádios após levantarem cartazes de protestos contra o então presidente Michel Temer.  

O caráter de negação política não pode ser creditado nem mesmo ao COI, o qual, seguindo a tendência de mudança no posicionamento em relação às questões enfrentadas ao redor do mundo, possui ações voltadas à igualdade de gênero e à sustentabilidade. Além disso, em 2015, diante da crise migratória, foi criada a Equipe Olímpica de Refugiados.

Esses fatos demonstram que a ideia de que o esporte é neutro e deve ser mantido longe de questões políticas, religiosas ou sociais é imensamente falsa. A forma de reunir pessoas diversas em um sentimento de unidade, fraternidade e respeito não é simples, mas não pode ser compreendida como apolítica. 

Polêmicas nas Olimpíadas de Tóquio

Outra prova disso, para os Jogos de Tóquio, é que mudanças também já foram anunciadas, inclusive com a flexibilização da Regra 50, passando-se a considerar determinados espaços adequados para protestos e manifestações políticas e sociais, como as cerimônias de abertura e encerramento, as redes sociais e os momentos de comunicação com a imprensa. Permanece vetada a manifestação no pódio, no decorrer das provas e na entonação dos hinos, a fim de manter o respeito mútuo e evitar que a estabilidade dos competidores seja abalada. 

Outro ponto de polêmica foi o veto à touca afro pela Federação Internacional de Natação (Fina), o que impede o seu uso nas competições internacionais, sob o fundamento de que o produto seria inadequado por não seguir “a forma natural da cabeça”, o que, após a repercussão negativa, passou a ser revisto.  

A política, que compõe todos os âmbitos da vida em sociedade, não poderia estar ausente em um evento como as Olimpíadas. Ela está na decisão sobre o local de realização do evento, nas regras de funcionamento e financiamento, na autorização de vestimenta, na concepção de liberdade de expressão conferida aos atletas, na organização das equipes e em toda a trajetória dos participantes. Portanto, a neutralidade aplicada aos Jogos Olímpicos, pressuposta para a manutenção do respeito, da harmonia e da fraternidade, não é apolítica. Na realidade, o silêncio sobre pautas relevantes reforça o status quo, o que, em si, já é uma posição política.  

As mudanças experimentadas nas competição que iniciará nos próximos dias devem ser seguidas por outras. A forma de manter a existência do evento ao longo dos anos, certamente, não é com a cristalização de valores e ideologias, mas com o acompanhamento das mudanças histórico-sociais.

Desirée Cavalcante

Advogada e doutoranda em Direito pela UFC, é professora de cursos de pós-graduação e 1a vice-presidente da Comissão Especial Brasil/ONU de Integração Jurídica e Diplomacia Cidadã da OAB/CE.