Bemdito

Descontrole externo: O aprisionamento político da PM no Brasil

País carece de imediato investimento na criação de órgãos externos, autônomos e independentes de fiscalização e controle
POR Thiago Paiva

País carece de imediato investimento na criação de órgãos de fiscalização e controle que sejam, necessariamente, externos, autônomos e independentes

Thiago Paiva
r.thiagoo@gmail.com

Todos sabemos que não começou ontem o uso ideológico das polícias, sobretudo a Militar, para fins político-eleitorais no Brasil. Obviamente, conforme a demanda, também não é de agora a necessidade de criação, investimento e reiterada concessão de autonomia a órgãos de fiscalização e controle que sejam, necessariamente, externos e independentes. Mas é fato que essa escalada autoritária, ilegítima e flagrantemente forçada tem alcançado um patamar surreal.

O lamentável desvirtuamento do episódio da morte do policial militar baiano Wesley Soares Góes, 38, em 28 de março último, alvejado por colegas militares durante suposto surto psicótico, ultrapassou as barreiras daquilo que já deveria ser considerado inaceitável. Fardado, armado e efetuando disparos para o alto, o militar teve de ser contido quando passou a atirar contra os colegas de farda, após horas de negociação. 

Além dos disparos de fuzil contra a composição que tentava demovê-lo da situação, Wesley expunha ao risco também os civis, que acompanhavam o drama de suas varandas “de frente pro crime”, no Farol da Barra, em Salvador. Ferido, o PM foi socorrido, mas não resistiu.

O que se viu em seguida foi um descalabro asqueroso e injustificável, sobretudo pelos fins, que foram além dos interesses políticos. Parlamentares e associações miliares passaram a defender motins, não somente na Bahia, para combater a “tirania dos governadores”. Vendiam a ideia de que Wesley foi morto pela “política de morte” do governador Rui Costa (PT), também adepto das efetivas políticas de isolamento social para contenção da pandemia.

Entre as infâmias e blasfêmias manipuladoras, destaca-se a ação do deputado estadual baiano Soldado Prisco (PSC), líder de motins anteriores, que gravou vídeos convocando paralisação dos militares em solidariedade ao colega de farda.

“Esse soldado é um herói. Agora a PM da Bahia parou. Chega de cumprir ordem ilegal!”, tuitou e apagou em seguida a presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, deputada Bia Kicis (PSL-DF).

A deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP) afirmou que o soldado morreu por não “aguentar tanta pressão”. Já o filho do presidente, deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), afirmou que, “aos vocacionados em combater o crime, prender trabalhador é a maior punição”, taxando as medidas de isolamento como “sistema ditatorial”.

Enquanto isso, a família do soldado Wesley ainda velava o seu corpo. Enfrentava a dor da perda e assistia, com um julgamento que desconhecemos, o episódio ser utilizado para fins políticos, endossado pelo negacionismo letal. Visto que enfrentávamos, já naquela data, o pior momento da pandemia, o uso da morte para atacar autoridades que defendem medidas restritivas e sanitárias como forma de frear o avanço da pandemia soou como mais um crime humanitário no Brasil de hoje.   

Wesley foi morto por colegas de farda. Interessante como, para alcançar os fins que buscam, aqueles que subvertem as polícias a seu favor ignoram até mesmo isso: um soldado foi morto pela polícia porque, sendo policial, atirou contra a polícia. E os mesmos colegas que estariam sendo oprimidos pela corporação e Governo, ao reagirem com o recomendado uso progressivo da força, puxaram o gatilho e, de oprimidos, viraram opressores. Mas as críticas desse grupo ideológico, que tem nos militares grande parte de sua força, pouparam cada um dos algozes PMs. Elas miraram o governador.

Impossível não recordar o episódio do sequestro de ônibus, na Ponte Rio-Niterói, no Rio de Janeiro, em agosto de 2019, quando ainda respirávamos por aí sem máscaras. O sequestrador foi baleado e morto por um atirador de elite. Tiro na cabeça. Segundo a própria PM, Willian Augusto da Silva tinha uma arma de brinquedo e ameaçava incendiar o coletivo. Na ocasião, os militares foram festejados, sobretudo pelo então governador do Rio, Wilson Witzel (PSC), perfil típico do cidadão de bem demagogo. Sobre o ex-juiz, deu no que deu.

Trazendo a situação para o contexto do Ceará, como não lembrar da postura do hoje deputado federal Capitão Wagner (Pros), na ocasião da Chacina do Curió, ocorrida em 2015. À época, então deputado estadual e presidente da Associação dos Profissionais da Segurança (APS), chegou a acampar em frente ao 5º Batalhão da PM, em Fortaleza, em protesto contra a “injusta” prisão de policiais no caso.

Acusou, inclusive, as delegadas responsáveis pelo inquérito, também profissionais da segurança, de “forjar provas” contra os 44 policiais militares presos por suposto envolvimento no caso, causando a indignação dos promotores que também participavam das investigações. Já na tragédia de Milagres, as associações também defenderam a atuação dos militares, reconhecida por eles mesmos, no calor da emoção, como equivocada.

E assim, feito massa de manobra, de maneira ainda mais acintosa sob o bolsonarismo, as tropas continuam servindo a projetos pessoais de poder. É preciso, urgentemente, investir em mecanismos efetivos de controle. Um bom exemplo, ainda que com seus defeitos e acusações de uso político, vem do próprio Ceará, com a Controladoria Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública (CGD), que ainda carece de aperfeiçoamentos, mas segue como modelo inovador. 

E não apenas isso. Carecemos também de legislações que padronizem e estabeleçam que as carreiras militares e políticas sejam distintas. Uma escolha. Abdicar de uma para estar na outra. A coabitação nestes dois meios será sempre um risco constante.  

Sobre o caso Wesley, caso a retiremos de contexto, a fala da deputada Zambelli talvez seja a única com algum sentido real. Ao afirmar que o soldado morreu por não “aguentar tanta pressão”, embora não tenha sido com esse propósito, a parlamentar expõe outra face urgente de um drama que afeta diversas categorias de trabalhadores e não só a dos policiais: a necessidade de acompanhamento psicológico preventivo.

Thiago Paiva é jornalista especializado na cobertura de segurança pública, política e judiciário. Está no Instagram e Twitter.

Thiago Paiva

Jornalista especializado na cobertura de segurança pública, política e judiciário, é assessor de imprensa e foi repórter especial no Núcleo de Jornalismo Investigativo do jornal O Povo.