Bemdito

Em defesa do corpo

A colocação do corpo nos filmes "Minha irmã magra", "Mulheres de verdade têm curvas" e "Garotas do calendário"
POR Olivia B. de Avelar
Filme: Garotas do calendário (2003)

Incontáveis manhãs, quando encaro o espelho, me avizinha a sensação de que o meu nariz não combina com meu humor. A cor dos meus olhos não lembra, nem de longe, as cores esgarçadas de um céu incomum de janeiro que assisti da praia, aos catorze anos: um pesado tom de azul acinzentado que nunca mais me deixou e que, desde então, serve de comparação para o que eu considero um céu de tonalidades admiráveis e impactantes. O que guardam cada uma das pequenas partes que formam o nosso corpo? 

Em julho de 2020, escolhemos três filmes que contassem histórias de substância corpórea, física. A pandemia, que já durava alguns meses, impedia nossos movimentos mais largos, confinava nossos membros e sufocava a nossa composição. Já àquela altura, imagens dos mortos na televisão gritavam sobre a nossa finitude – não que seja possível vivermos sem essa lembrança, mas a repetição diária se transformava em um memento mori incômodo e aterrador. Escolhemos, por isso, filmes que expressassem a vontade do corpo. 

A imposição palpável da vida que precisava prosseguir, apesar de tanta morte, mas nunca à despeito dela – uma vida que honra e respeita a morte, uma vida que, enquanto triunfa, treme de dor, medo e desespero. A colocação do corpo no mundo foi a ordem escolhida: primeiro, o corpo infantil, no filme Minha irmã magra. Depois, o corpo feminino que explode em formas, no filme Mulheres de verdade têm curvas. E, por fim, o corpo envelhecido, no filme Garotas do calendário

A hierarquia imposta aos nossos corpos, em qualquer idade – os pés que dão suporte, a cabeça que nos direciona ao conhecimento elevado – tantas vezes estará fadada ao fracasso por tentar comportar nossas infindáveis maneiras de experimentar e extrair sentido de nossas vivências: quanto conhecimento vem de abaixarmos a cabeça e encostarmos a testa no que nos sustenta? Quanta elevação alcançamos ao suspendermos nossos pés bem alto no ar e encontrarmos o nosso equilíbrio, exatamente, quando nosso corpo é revirado e nosso mundo é pendurado pelos pés que vão ao alto enquanto a cabeça vai ao chão? 

Como fazer conviver: a imagem abstrata que faço de mim, me olhando de dentro, com a imagem materializada que pertence muito mais aos outros olhos que me observam do que a mim mesma? Como se construíam todas as pessoas que viveram eras antes de podermos nos encarar, julgar e comparar com os outros diante do espelho? Quando não existiam espelhos e nossa imagem corporal só existia dentro de nós, eram os olhos alheios ainda mais pesados ou mais leves ao olharem uns para os outros e servirem como nosso/deles absoluto reflexo?

Meu corpo caminha pela terra em linha reta: meu semblante infantil é inalcançável, enquanto minhas aflições da infância, felizmente, me acompanham a todo momento. Não posso imaginar com exatidão quais cicatrizes e marcas meu rosto de idosa vai exibir, mas sou tomada de ansiedade, projetos e promessas incumpríveis que me faço e que me assolam sobre o futuro. Meu corpo é datado e sólido, enquanto minha identidade mais parece ser feita de espuma. Como reconciliar um corpo que caminha e fenece de maneira linear e uma imensidão interna que se expande, todos os dias, em todas as direções? 

Em defesa do corpo: não fosse ele, não nos seria possível tocar, sentir e amar um outro infinito tão vasto que nos olha de volta do outro lado da sala e que respira tão breve deitado, ao nosso lado, sobre a mesma cama. O corpo que zarpa, feito nau que singra os mares e, um dia, vai se esfarelar num porto – mas, nesses tempos que estamos vivendo, mais do que nunca precisamos nos apegar à cada emoção dessa viagem que, vivida com força, se faz sem forma, porém sem fim.

Olivia B. de Avelar

Professora, escritora e apaixonada por cinema, é formada em Letras e pós-graduada em Filosofia.