Bemdito

O sexo não existe

Melhor maneira, inclusive, de fazê-lo uma prática com direitos e prazeres iguais é reconhecer sua diversidade no tempo e no espaço
POR Humberto Pinheiro
Foto: Phryne revealed before the Areopagus (Jean-Léon Gérôme)

E a melhor maneira, inclusive, de fazê-lo uma prática com direitos e prazeres iguais é reconhecer sua natureza não natural, sua diversidade no tempo e no espaço, sua instrumentalidade política, sua história de usos nas estratégias de controle e de resistência. Dizer a sua inexistência como uma espécie da espécie é saber da sua existência nas relações de força dos e como corpos. É entender que o sexo muda porque não muda enquanto o mundo muda, parafraseando o que já foi dito sobre livro e leitura, ou sobre a morte também.

Aceitá-lo como algo essencial, necessário, elementar da vida é cair num dos seus ardis de condução das condutas, de guia dos possíveis, de interdição do estranhamento e da divergência. Pois os discursos e outros investimentos numa sexualidade funcionaram tantas vezes para modular domínios, para estruturar poderes políticos, econômicos, científicos, sobretudo na medida em que era desenhado como uma dimensão alheia a esses interesses.

Sua construção como território da inocência, da pureza, mas também da índole e dos impulsos, foi um efetivo disfarce para suas maquinações nas geopolíticas dos Estados. Por isso, todo tratado de governo é um tratado sexual, apesar da sua aparência casta. Aqui, aliás, esteve muito da sua malícia, das suas perversões, exatamente quando tudo mal indicava que não tratava do assunto.

É menos em Freud do que em Thomas Hobbes e Maquiavel, por exemplo, que devemos observar os problemas de um “inconsciente” desse desejo. É menos nas camas e nas fricções dos corpos do que nas mesas dos burocratas que devemos procurar as taras e as vontades mais estranhas. E não estou me referindo às trepadas sobre esses balcões da administração pública. Falo das suas atas e dos seus relatórios, dos seus projetos e dos seus despachos, que deveriam ser estudados como uma precisa antologia da prosa pornográfica, enquanto Sade mereceria ser lido como teoria política e reflexão sobre ordenamento jurídico. O chicote e as algemas sempre foram muito mais law toys, mas não só como fantasia, infelizmente.

Por isso que certas experiências que são interpretadas como superficialidades ou mesmo falsificações de um suposto sexo “verdadeiro” podem nos oferecer, ao contrário, uma melhor percepção do que está envolvido nessas relações, principalmente o que não deve ser visto nessa “hora”, o que deve ser motivo de pudor e vergonha, e não falo de nenhuma parte do corpo.

Mais do que genitálias e amantes, são algumas articulações e identificações que não podem ser descobertas. O sexo como trabalho sexual é uma delas. Em algumas (ou em muitas) medidas, somos sempre profissionais dessa prática, embora não queiramos essa tomada de consciência e rejeitemos, com um elitismo cínico moralizador, qualquer coincidência entre essas dimensões, forjando delírios como o sexo que seria feito por mero interesse material e o que não seria, o que seria pago e o que não seria.

Como não transamos numa ágora da Antiguidade grega, é muito difícil encontrar (e praticar, principalmente) um sexo tão desinteressado assim, não obstante o decadentismo romântico. A expressão “sexo por amor” é uma das sínteses cafonas desse blefe, um agente do serviço secreto do controle subjetivo, como o que estruturou os domínios simbólicos e econômicos dos homens sobre as mulheres, impedindo-lhes ou dificultando-lhes direitos e outras igualdades para poder cumprir o “verdadeiro” destino do sentimento amoroso na condição de esposa e dona de casa.

Não foi por acaso que tanto se pensou e se discutiu a regulamentação pública da prostituição nesses últimos duzentos anos. Foram muitas normatizações e ações para definir os locais, os registros, os horários, as taxas, toda uma paisagem para o “sexo por dinheiro” na cidade, o que foi uma forma de inventar e reforçar os seus supostos contrários, como o casamento.

Mas toda a produção dessa diferença entre sexo sentimental e venal, com seus sujeitos e lugares, seria feita também com figurações de estigmas e precarizações das prostitutas para que as das esposas não ficassem explícitas. Como era importante que a “alternativa” para as mulheres à vida conjugal nessas condições sociais fosse pior, a prostituição foi muito mais mantida num limbo jurídico e de regulamentação, o que facilitava também várias formas de violência contra elas, como muitas características do matrimônio também garantiram por muito tempo que os maridos se sentissem à vontade para abusar e agredir, inclusive argumentando que estavam pagando ou que não estavam pagando.

Até aqui, toda essa literatura, tanto num caso quanto em outro, foi muito mais feita por homens e para homens, porque também as mulheres ficavam impedidas de acessar e participar desses mundos de escrita e decisões. Nossas frases e imagens românticas e das divisões do desejo sexual que circulam por aqui e por aí são marcadamente um ponto de vista masculino. É preciso desvelar os documentos de sangue nos monumentos à paixão amorosa. E ao invés de perguntarmos “o que é o amor?”, temos de saber quanto ele custou e ainda custa.     

Humberto Pinheiro

Historiador e pesquisador em história da sexualidade, também tem pesquisas na área de história da literatura e do romance moderno.