Bemdito

Deixa eu te explicar como funcionam as coisas

Uma conversa com quem insiste em dizer que não reconhece direitos de outras pessoas
POR Geórgia Oliveira

Sob o risco de incorrer na acusação de “mansplaining reverso”, decidi escrever este breve texto para explicar algumas coisas sobre como funciona o reconhecimento de direitos, questões que muitas vezes passam um pouco despercebidas pelo interlocutor ou interlocutora mais desatentos, menos informados ou apenas preconceituosos mesmo. Vale ressaltar que todas as situações e frases aqui citadas são exemplos meramente ilustrativos e hipotéticos. Qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência (uma infeliz coincidência, se o caso for de você já ter pronunciado alguma delas).

Ao estudar o processo pelo qual elaboramos nosso conhecimento sobre o mundo, percebemos que existe uma aproximação muito grande entre o sujeito cognoscente (uma expressão difícil para definir aquela pessoa que está conhecendo algo) e o tema que se está conhecendo. Quando o tema é mais complexo ou exige um grau maior de reflexão, informação e diálogo, fora do que chamamos de senso comum, muitas pessoas tendem apenas a dizer “eu não reconheço” ou “eu não aceito isso”, como se a opinião baseada no desconhecimento e na intolerância fosse suficiente para encerrar o assunto.

Se essa postura já é indesejável em qualquer âmbito da vida, quando discutimos o Direito e os direitos ela é ainda mais intolerável. Um exemplo, infelizmente comum, desse tipo de atitude é a pessoa que, ao precisar refletir sobre identidades fora da norma cisgênero e heterossexual, diz “eu não reconheço identidade de gênero” ou “para mim, homem é homem e mulher é mulher”. Ou então, numa tentativa de passar a imagem de tolerância, diz “eu respeito, mas não reconheço”. Esse tipo de afirmação, além de transfóbica, centra no campo da opinião pessoal, do “eu”, questões que absolutamente não dependem de um parecer individual e tentam passar a ideia de que reconhecimento e respeito são faces de moedas diferentes.

O respeito não impõe condicionantes, não vem com um “mas” logo após alguma concessão mínima, que mal chega perto de expressar real consideração por outro ser-humano. Se seu desejo é de fato respeitar alguém, a frase termina com um ponto final: “eu respeito.”. Não custa lembrar que a existência de outras pessoas, da forma que elas desejam viver e se expressar – bem como o conjunto de garantias e reconhecimentos que elas têm por direito -, não passa pelo seu “eu acho”, porque os direitos de todo um grupo não dependem do que você pensa.

Isso pode ser difícil de absorver num primeiro momento, principalmente por pessoas que estão acostumadas não só a dizer o que pensam sobre tudo, mas também a supor que tudo que dizem é relevante. No entanto, garanto que é um trauma necessário para uma compreensão mais respeitosa e nítida de como as coisas funcionam. Não se trata aqui de dizer apenas para que deixem de falar contra outros indivíduos, por medo de um suposto “politicamente correto”, mas, sim, de propor a reflexão e o questionamento dos nossos próprios pressupostos: o que você acha só reflete suas próprias limitações na compreensão dos outros.

Quando temos sorte, os direitos avançam de forma mais rápida e constante do que a moral comum da sociedade, trazendo para a esfera jurídica conceitos que nem sempre são óbvios ou reconhecidos pela população em geral. Na ocasião em que isso acontece, percebemos que o desconhecimento se traduz na ironia de perguntar “e tem mais essa agora?”, como quando falamos sobre feminicídio ou, mais recentemente, sobre violência psicológica.

A dificuldade no caso é entender que garantias e leis direcionadas a grupos sociais específicos – como as mulheres, as pessoas negras, as pessoas com deficiência ou a população LGBTQIA+ – não significam privilégio, mas justamente o contrário: significam que a discriminação muitas vezes histórica e estrutural impõe que os direitos desses grupos sejam afirmados de forma específica e nominal.

É possível e desejável questionar como o processo de reconhecimento de direitos é também uma forma de moldar, acomodar e restringir aqueles que não se encaixam nos ideais normativos, traduzindo para direitos pretensões que vão muito além do que o sistema jurídico possa oferecer. No entanto, não podemos perder de vista que, enquanto existirem esses direitos, principalmente aqueles garantidos a grupos discriminados, eles devem ser cumpridos e respeitados em sua integralidade e devem avançar sempre.

E a quem terminar esse texto achando que sua opinião desinformada ou intolerante ainda tem relevância, ou que ainda pode dizer “eu acho” para desprezar os direitos de outras pessoas, lembro: eles não dependem da sua opinião.

Geórgia Oliveira

Pesquisadora em violência de gênero, é mestra em Direito pela UFC, professora universitária e atua com divulgação científica em pesquisa jurídica no projeto Pesquisa e Direito.