Quando Rafa Kalimann encontra Deleuze e Guattari
Só de existir no mundo, já projetamos algo para nós e para os outros. E também sobre o que pode vir a ocorrer. Arriscar pensar no que vai acontecer não nos custa muito. Psicólogos até dizem que faz bem quando a projeção é positiva. Mas, convenhamos, de uns tempos para cá, a coisa degringolou. O exercício de pensar no futuro tem se tornado cada vez mais difícil e nos exigido uma inventividade desmedida. O lance é que, ao considerarmos alguns fatos recentes, há que se admitir o desafio imenso de subjetividade que a possível realidade futura nos impele.
Penso que o fato de o cantor Sérgio Reis estar acamado após sofrer ataques e críticas sobre sua prótese peniana não passaria pela imaginação nem dos mais criativos literatos. O humorista Batoré dando aula de ciências políticas e atuando como intelectual orgânico à frente do grupo de uns 25 a 30% da população? Isso não faria sentido nem para Gramsci preso em sua cela na Itália. O que concluíram o psicanalista Félix Guattari e o filósofo Gilles Deleuze ao se deparar com um pensamento desenvolvido por eles como legenda de post da digital influencer e ex-BBB Rafa Kalimann? Quem diria que o novo “grito do capitalismo” viria pela voz de Márcio Victor, na interpretação de Lepo Lepo, segundo ele próprio? As delimitações dos campos simbólicos bourdieusianos parecem estar cada vez mais enlinhadas.
Trocando o dinheiro do dízimo antes de ir ao culto na década de 90, aposto que os fiéis não esperariam máquinas ao alto que anunciam recebimento também em débito. Creio que também as frequentes taças de boca larga de gin que inundam as festas não passaram pela cabeça dos botequeiros brasileiros habituados aos copos americanos.
Mas não há páreo para o campo político brasileiro, que está mais para uma reunião de todas as vanguardas europeias, com ênfase no dadaísmo surrealista (se é que existe esta combinação). Mesmo na onda midiática de Collor, ficaria quase impossível prever um presidente que teve a sua ascensão política no programa Super Pop. Depois nosso governante atacou de golden shower, jacaré, imitação de gente agonizando e bizarrices ad infinitum. Um autoritarismo mambembe instaurou-se. Ministro da Educação que é contra a educação do povão. Sujeito encarregado-mor do meio ambiente fazendo selfie em frente à pilha de troncos de árvores cortadas. O astronauta e garoto propaganda de travesseiro com suposta tecnologia da NASA, como o nosso Ministro da Ciência, Tecnologia e Inovações. Cenário desafiador até para a imaginação de William Gibson, George Orwell, William Burroughs e Agatha Christie em uma publicação collab.
Não pense que, fora do Brasil, o mundo tem “arrodeado” sem solavancos em um futuro previsível. Não sei se era tão esperado assim que, nas carreiras, os americanos, farol mundial, fossem pegar a viola, botar na sacola camuflada e viajar de volta ao continente de origem depois de 20 anos de ocupação no Afeganistão, abrindo espaço e terras livres, mas nem tanto, aos grupos terroristas. Hal 9000, aquele computadorzinho vingativo criado por Kubrick, não se vingou de ninguém em 2001. A odisseia em vez de “no” foi “pro espaço”, no sentido figurativo em vez de literal. Pelo contrário, os ricaços passaram a ocupar, com certeza facilidade, o universo em 2021. Aposto também que os viajantes da década de 80 não imaginavam que, na sua aposentadoria, teriam que portar passaportes de viagem e de vacinas, além de máscaras, antes mesmo de embarcar.
Sou professor de criação e nessas horas sinto-me fechado num quadrado minúsculo. Um careta, sem poder de abstração. A cabeça não dá conta de tanta associação improvável. Como apostou Boaventura de Souza Santos num livro de título bem apropriado (Pela mão de Alice. O social e o político na pós-modernidade), ”a realidade parece ter tomado definitivamente a dianteira sobre a teoria”.
Por isso, fico eu aqui com as minhas dúvidas, enquanto desejo boa sorte às e aos analistas de todas as conjunturas pensáveis e impensáveis.