Por que muitos homens não conseguem dizer como se sentem?
Há cerca de um mês iniciei a leitura do livro Um preço muito alto: a jornada de um neurocientista que desafia nossa visão sobre drogas para um novo projeto que deverá sair em breve. Escrito por Carl Hart, professor de psiquiatria e psicologia da Universidade de Columbia, ele tem como objetivo propor outro paradigma para a compreensão das drogas e das complexas tramas que condicionam seu uso, além de refletir criticamente sobre as terríveis consequências advindas das políticas repressivas adotadas como principal resposta à problemática.
Entrelaçada às descobertas que vai fazendo ao longo da carreira, construída em torno da investigação dos efeitos do crack e da cocaína em usuários das substâncias, ele nos conta os caminhos e desvios que levaram um menino negro e pobre, crescido em um lar disfuncional na periferia de Miami, a ocupar posição de destaque numa das universidades mais prestigiadas do mundo. Mas ao fazer isso, talvez sem se dar conta, Carl acaba nos revelando parte do ethos envolvido na produção da masculinidade.
Tendo crescido sem uma figura masculina que lhe servisse de referência, já que a separação dos pais se deu quando era ainda uma criança, ele fala sobre a experiência e os perigos enfrentados na busca por autoafirmação. E também de como o aprendizado para se tornar um homem envolvia, em alguma instância, a supressão da própria subjetividade e a consequente ausência de um repertório linguístico que o possibilitasse falar a respeito de si.
Uma passagem do livro traz isso de maneira muito viva, “Consequentemente, muito do que eu aprendi sobre relacionamentos se deu da mesma maneira de meu aprendizado sobre o sexo: pela observação dos outros, pela imitação dos homens que eu admirava, com bem poucas instruções explícitas, discussões ou mesmo reflexões. Desde o início, uma coisa estava muito nítida: você não poderia se apegar muito às mulheres – ou, se isso acontecesse, você certamente não deixaria ninguém ficar sabendo” (2013, p. 63).
Ser homem tinha a ver com ser silencioso, saber circular pelos lugares de maneira confiante, não levar desaforo para casa, estar sempre pronto a responder fisicamente quem quer que atravessasse seu caminho e, sobretudo, permanecer emocionalmente desimplicado, no “controle” da situação. Apesar de tudo isso, Carl reconhece, mais a frente, que toda essa performance servia não só como estratégia de sobrevivência, mas também como uma maneira de esconder inseguranças emocionais, pela recusa em admitir a própria vulnerabilidade.
Fragilidade no cinema
Moonlight (2016), dirigido por Barry Jenkins, traz uma história que, embora ficcional, possui inúmeras semelhanças não apenas com a vida de Carl Hart, mas em maior ou menor grau, com a de muitos homens. No filme somos apresentados à jornada de Little, menino negro, tímido e franzino, criado pela mãe sem qualquer contato com o pai. Certo dia, ele é encontrado por um traficante de drogas chamado Juan, enquanto se escondia de um grupo de valentões que o perseguiam por ser diferente dos outros. O homem então leva o garoto para a casa onde vive com Teresa e lá ele passa a noite. Desse primeiro contato se estabelece uma relação de proximidade entre Little e o casal, a quem passa a visitar com frequência, por encontrar neles o amor e a atenção que não conseguia achar na própria mãe. Ironicamente, ela era uma das consumidoras das drogas vendidas por Juan, fato que, ao ser descoberto por Little, marca o final do primeiro ato.
Em seguida vemos o desenrolar de sua vida já como adolescente, período em que já não pode mais contar com o apoio de Juan, assassinado, e nem com o de sua mãe, cada vez mais afundada no vício em crack. A descoberta da própria sexualidade aparece como outro processo repleto de angústia, pois ela é motivo de constantes perseguições dos outros garotos, os quais afirmam a própria masculinidade ao negar a feminilidade identificada por eles no corpo de Little, apesar dos constantes esforços deste para conter seu desejo. É nessa época que o personagem tem a primeira e única experiência sexual de sua vida, com o amigo de infância Kevin, por quem se sente atraído.
No entanto, vendo-se compelido a cumprir outro dos rituais de afirmação de masculinidade, Kevin é instado pelos amigos a bater em Little, a fim de provar que era um “homem de verdade”, obrigação diante da qual acaba sucumbindo. Cansado dos abusos sofridos e percebendo que a única chance de sobreviver seria assumir a violência como gramática, na volta às aulas, após se recuperar dos ferimentos, Little quebra uma cadeira nas costas de Terrel, instigador da agressão sofrida, e por isso acaba sendo mandado para um reformatório.
O terceiro ato começa mostrando as costas musculosas do personagem que, tendo se livrado do antigo apelido, passa a atender pela alcunha de Black. Assim como Juan, ele agora atua como traficante, levando uma vida em tudo parecida com a da única figura paterna que conheceu, menos pela solidão dos dias, ocupados integralmente com o trabalho. Essa rotina é quebrada quando Black recebe uma ligação inesperada de Kevin, o qual, muitos anos após a “briga” dos dois, entra em contato para pedir desculpas e convidá-lo a passar no restaurante em que trabalha.
Nas histórias de vida de Carl e de Black, em que pese serem atravessadas por uma trama de relações decorrentes dos outros marcadores que carregam, chama atenção a maneira como a socialização masculina hegemônica exige, como preço a ser pago pelo acesso a seu vasto território de privilégios, a supressão de parte da subjetividade deles, incapazes de falar sobre sentimentos sem colocar em risco suas identidades. A frustração causada pela redução normativa do campo simbólico acessível aos homens, ou seja, das ferramentas necessárias para lidar com a complexidade das relações e dos próprios afetos, muitas vezes acaba produzindo comportamentos abusivos e/ou violentos, alimentados por uma desimplicação ética diante das atitudes tomadas, trazendo consequências não só para as pessoas próximas, mas também para nós mesmos.
As duas obras, pelos entrelaçamentos que as vincula a outras tantas narrativas, reais ou fictícias, sobre tornar-se homem trazem à tona a necessidade de refletir sobre as consequências desse silenciamento a que somos submetidos para conquistar o “direito” de exercer poder sobre os corpos de outros/as/es, alimentando um ciclo de abusos inconscientemente repetido a cada vez que, a um menino, é ensinado que a expressão de afetos é sinal de fraqueza a ser a todo custo evitado.