São os direitos reprodutivos, prefeito estúpido!
A Prefeitura de Fortaleza, há duas semanas, deu sua contribuição para atualizar a história da perseguição contra as mulheres, principalmente de tudo o que já foi feito para impedi-las de ter garantias nas suas vidas, o que significa necessariamente sempre ter autonomia sobre seus corpos, ter independência de decisões sobre todas suas experiências corporais e ter a segurança do reconhecimento e do respeito por todas elas. Isso significa também a luta e a conquista de direitos sexuais e reprodutivos.
Aliás, as práticas do sexo e da procriação foram e continuam a ser trincheiras das investidas de dominação e controle dos homens sobre trajetórias femininas. Esses entrincheiramentos, inclusive, já variaram historicamente sob diferentes formas e álibis, como instituições de leis e de fé, de letras e de ciências, de políticas e de afetos. Poderes esses (e seus saberes) sempre colaborando (com a força, com a morte, com estigmas, com prisões) para que o corpo de uma mulher pertencesse a todos eles menos a ela, para que a Igreja, o Estado, a medicina, o cônjuge, os filhos, o mercado, o entretenimento, todos esses e outros espaços e discursos feitos de homens para homens pudessem ter ascendências e privilégios sobre elas, sobre o que podem fazer e desejar das suas existências.
A colaboração canalha para essa perversidade patriarcal que o prefeito José Sarto deu tornou-se mais nojenta por ser feita sem qualquer novidade nesse percurso macabro da misoginia e do genocídio das mulheres, principalmente mulheres racializadas e pobres. Sua gestão municipal não conseguiu inovar nem na desfaçatez dos nomes e dos argumentos. “Semana pela vida”, José Sarto, é o caralho! Se para mim não estivesse bem clara a sua prestação de serviço ao machismo secular e estrutural, eu perguntaria se você e seu bando não têm mais o que fazer e o que não fazer.
Há muito é comum usar uma ideia de defesa da “vida humana” para subjugar as vidas femininas. Nessa noção, faz-se viver tudo o que permite a continuidade da dominação masculina (principalmente, heterossexual e branca), deixando morrerem as mulheres, muitas vezes fazendo diretamente suas mortes, que são biológicas, jurídicas, sociais, tendo cada um desses tipos de extermínio sua participação no outro, lastreando os outros.
Apesar do conhecimento desse percurso, foi assustadora a notícia da validação da lei municipal que cria a tal “Semana”, instituindo-a na agenda oficial de eventos da cidade, com o uso de campanhas publicitárias, que comumente movimentam muita grana dos cofres públicos, com suas planilhas super faturadas e outras delinquências, entre agências de publicidade e gestão pública, tendo tantas vezes os mesmos sobrenomes (ou muito próximo, se for o de um amigo) nos dois lados desses contratos, que são acertadas pela mesma parte, do mesmo perfil, do mesmo bairro, com a mesma praia, as mesmas viagens, os mesmos carros, do mesmo gênero, da mesma violência de gênero, principalmente nessa versão que seria feita no contexto desse calendário municipal contra os “malefícios do aborto à mulher” e os “malefícios médicos e psicológicos da utilização de anticoncepcionais”.
Dada a quantidade de maldades que a municipalidade do Sarto quer combater e dos valores (aqui, nos sentidos moral e financeiro) envolvidos nisso, teremos um verdadeiro “festim diabólico”, com a diferença local dessa festa acontecer enquanto se tenta esconder o desprezo e o assassinato dos direitos das mulheres sob inspiração da metafísica dos homens de bem, mas com uma mínima presença feminina viva entre os convivas, tal como é na composição do secretariado do anfitrião José Sarto. Na sua administração, entre secretários de órgãos e de regionais e procuradoria e controladoria municipais, são vinte e quatro homens e seis mulheres.
A matéria dessa lei sancionada no último dia 10 de setembro em Fortaleza foi apresentada em 2017 pelo vereador Jorge Pinheiro (PSDB). Vejam como quando se trata de decidir sobre o controle dos corpos das mulheres o entendimento é suprapartidário, embora a prefeitura Sarto, que é do PDT, também esteja negociada com os tucanos desde o “começo”, desde bem antes do “começo”.
Há uma semana, depois de sofrer críticas, o prefeito resolveu disfarçar sua micareta macabra incluindo no decreto atividades de esclarecimento sobre acessos a métodos contraceptivos. Mas não deu nem pra fingir dizer que eles não sabem o que querem. Essa foi mais uma medida oficial que aprofunda as desigualdades de classe, de gênero, de raça.
Como lembrou a professora e pesquisadora Geórgia Oliveira neste espaço do Bemdito, “as mulheres que procuram interromper a gravidez estão em todos os espaços sociais: as que têm recursos financeiros e privilégios raciais e econômicos realizam o procedimento em segurança; aquelas que não dispõem desses recursos abortam de forma insegura e enfrentam a punição penal ou a morte em decorrência disso”.
Enquanto preparava este meu texto, vi hoje, 27 de setembro, que o principado católico de San Marino aprovou a legalização do aborto num referendo por 77,3%, poucas semanas depois dessa mesma conquista no México e na sequência de uma vitória histórica da luta pelos direitos reprodutivos na Argentina.
Mas a atual prefeitura masculina de Fortaleza decidiu ser contemporânea do retrocesso, quis reproduzir aqui as cruzadas moralistas do século XIX nos Estados Unidos e seu Decreto Comstock, uma lei federal “contra a obscenidade” que também proibia, em uma das suas disposições, os “aparatos contraceptivos ou abortivos, assim como informações sobre eles”.
Outro dia, minha amiga Carolina Cordeiro, bióloga e também colunista do Bemdito, me falava que se a gravidez fosse no homem já teria sido desenvolvida uma vasta tecnologia para permitir todo o processo de gestação fora do corpo. Sem dúvida. Se a gravidez fosse uma experiência corporal masculina, todos esses direitos que às mulheres são negados ou dificultados já estariam havia muito estabelecidos e haveria toda uma vasta literatura desconstruindo, desestimulando ou relativizando a procriação.
Se fosse o homem que ficasse fisicamente grávido, a “Semana pela vida” dos varões municipais não teria sido sequer imaginada como distopia.