Um trajeto intercontinental: atravessar o oceano para nada
Antes de abrir os olhos hoje cedo, ainda na cama, assaltou-me a lembrança da história que ouvi naquela tarde invernal, a milhares de quilômetros daqui, uma história que por muito tempo não pude processar e agora talvez a compreenda.
O movimento no interior do café era mínimo. Além de Bianca e eu, que esperávamos sempre famintas as medialunas, havia apenas um rapaz sentado diante do janelão de vidro. A fumaça de seu cigarro pairava ao lado dos cachos que lhe contornavam a cabeça, prateada pela luz vinda do lado de fora. Seu olhar parecia prender-se às árvores da rua e não se alterava pela passagem de transeunte algum.
A cena ocorreu há mais de oito anos, e desde então não me deparei com outro homem que parecesse tão solitário quanto aquele holandês desolado num café uruguaio. Bianca e eu o tomamos como tema de nossas conversas inesgotáveis, ali mesmo, baixando o tom da voz. Tentamos examinar a situação aparentemente quieta, medir a gravidade de suas expressões, observar seus sapatos, entender a rigidez de certas partes do corpo no contato com a cadeira.
Queríamos chegar até ele, que nos parecia charmoso e absoluto dentro do pequeno aquário despovoado que havia criado em torno de si. Resolvemos escrever algo simpático no guardanapo de papel e pedimos, aos risos, que o garçom gentilmente realizasse o envio. Não sei que frase formulamos nem o quanto estávamos sóbrias, mas o bilhete sob guardanapo se tratava de um modo de comunicação no qual tínhamos fluência, concisão e boa caligrafia.
Se o convidamos para venir a nuestra mesa, tomar un café ou compartir una botella de vino, já não me recordo, o importante é que ele se ergueu e veio em nossa direção. Não sorriu, mas agradeceu o convite. Contou que estava em Montevidéu pela segunda vez e retornaria a Amsterdã no dia seguinte. Logo Bianca e eu parecíamos duas entrevistadoras dedicadas a uma curiosa pesquisa.
Em poucas palavras, destrinchamos um enredo: na primeira vez em Montevidéu, por conta de um estágio, conhecera a mulher por quem se apaixonou. Estiveram juntos enquanto durou o projeto. Quando ele precisou regressar à Holanda, inicialmente mantiveram contato e ambos falavam do desejo de reencontro, até que ela aos poucos foi se distanciando, com frases evasivas e por fim deixou de lhe responder os e-mails e atender-lhe os telefonemas.
Conversamos sobre as aflições dos relacionamentos à distância, porém, a pergunta óbvia ainda palpitava: houve o reencontro? Respondeu que não. Havia viajado num impulso, com o intuito de criar coragem para revê-la. Durante toda a semana em que esteve na cidade, caminhou pelo bairro dela, pelos locais em que transitaram juntos tantas vezes, ansiando deparar-se com ela por acaso ao descer do ônibus ou ao adentrar o mercado, mas em nenhum momento decidiu bater à sua porta.
Disse que retornaria na madrugada seguinte enquanto Bianca e eu nos revoltávamos com sua aparente estagnação. “Um trajeto intercontinental, atravessando o oceano, para nada”, foi o que pensei à época. O que aconteceu dentro dele, ao longo dos percursos gelados pelo bairro, das longas tardes nos cafés ou das noites mal dormidas no Hostel Central? Só agora me dou conta de que, naquela viagem, ele de fato deu ouvidos às ondas de silêncio que ela causou e, levado por essas ondas, revirou-se, perdeu o ar e aportou um outro homem, sem urgências.