Bemdito

Professor, uma profissão do desassossego

A importância de compreender as razões para o mal-estar docente
POR Paulo Carvalho
Detalhe da obra "Teach the ignorant", do escultor italiano Antonio Canova

Eu poderia começar falando da criança que preferia brincar de escolinha a jogar futebol. Ou do estudante de faculdade que, quando provocado a afirmar a carreira que seguiria, já conseguia responder com convicção que seria o magistério. Soaria majestoso e epopeico para uma data comemorativa como a de hoje. Mas é fato que vivemos em um país que nos pergunta porque somos só professores. Só. E isso diz muito do Brasil que acaba de aprovar um corte de 92% dos recursos da ciência para ser destinado a outras áreas. O investimento em inovação começa na sala de aula. 

Sabemos da dificuldade de educar atualmente, dos dilemas e obstáculos da carreira docente em um país como o nosso, especialmente no momento em que se encontra. Para isso, é preciso aparar as vírgulas em discursos que romantizam a profissão e que servem de névoa à necessidade urgente do enquadramento da educação como política de Estado a partir da valorização das instituições e profissionais que a realizam. Por vezes apresentados como uma figura mítica de sacerdócio, a verdade é que a maioria dos professores no Brasil pegaria fácil uma fila para troca desse diploma de herói por uma perspectiva concreta de carreira docente mais sólida e promissora. 

Um passo importante para esse debate é compreender as razões para o que se convencionou chamar de mal-estar docente, que afeta o envolvimento do profissional com o trabalho e a insatisfação com o magistério. Isso se dá não apenas pelas condições de trabalho, mas também pelas novas expectativas e demandas colocadas pela sociedade à escola. O cenário é conhecido e envolve não só questões psicológicas e emocionais do professor, mas uma estrutura ético-política em que ele está inserido. É um dos motivos que tem gerado abandono de carreiras, esvaziamento dos cursos de licenciatura e risco para uma futura geração de professores no país. Isso tem sido sentido com mais força durante essa turbulência em que os profissionais e as instituições de ensino estão vivendo durante a pandemia, com seus reflexos diretos na intensidade de trabalho e no risco permanente de desemprego e reduções remuneratórias.  

Isso afeta qualquer categoria profissional, já que a profissão do professor é fundamental para o exercício de inúmeras outras profissões. As novas habilidades para o mundo do trabalho exigem competências diferenciadas na sala de aula, sobretudo em uma conjuntura indefinida de pós-pandemia. Essas habilidades incluem, conforme o Fórum Econômico Mundial, pensamento analítico, crítico e inovador, estratégias de aprendizado, resolução de problemas, criatividade, liderança, resiliência e inteligência emocional. Para isso, as perspectivas educacionais são cada vez mais para a busca de competências cognitivas aliadas a competências socioemocionais, personalização de ensino, resolução colaborativa de problemas, protagonismo do aluno, uso da tecnologia, flexibilização curricular e práticas interdisciplinares. Esse tem sido o alvo ambicioso do trabalho do professor, que exige necessariamente condições apropriadas e seguras para esse exercício na engrenagem de uma sala de aula que precisa de inovação. 

O professor trabalha com algo precioso, o conhecimento. Para Peter Burke, conhecimento é qualquer instância de um organismo que estabeleça sua relação com o mundo. Um bom professor nunca perde a consciência sobre aquilo que não sabe e essa é uma chama sedutora da sala de aula, que por vezes o seduz com um otimismo resistente. Fernando Savater, no seu livro O valor de educar, diz que os pessimistas podem ser bons domadores, mas não bons professores. 

Sempre levamos conosco o exemplo de um professor que descortinou nosso mundo. A busca por conhecimento é um passo a frente da valentia humana. A força da sala de aula existe porque ela é movida não só pelo desejo de saber e decisão de aprender, mas também pela conquista da liberdade através do estudo e do esforço responsável. Esse processo é difícil, complexo e exige um profissional competente, sensível e valorizado. 

Esse é o Dia dos Professores do centenário de Paulo Freire, que nos ensinou que não basta saber que “Eva viu a uva”. É preciso compreender qual a posição que Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para produzir a uva e quem lucra com esse trabalho. Esse é mais um desassossego onde mora um professor. 

Paulo Carvalho

Doutor em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa, coordena o grupo de pesquisa Labuta e é professor de Direito e Processo do Trabalho.