Bemdito

O mercado como educador

Uma reflexão íntima sobre a coragem de ser professor em meio a acordos corroídos entre escola, estado e família
POR Olivia B. de Avelar
Cena do filme "Sociedade dos poetas mortos", de Peter Weir (Foto: Reprodução)

“Eu fui para a floresta porque queria viver deliberadamente. Eu queria viver profundamente e sugar toda a essência da vida. Para acabar com tudo que não fosse vida. Para que quando minha morte chegasse eu não descobrisse que não vivi.”

No dia 27 de agosto de 2001, escrevi esse trecho do poema de Henry David Thoreau na primeira página do meu diário, logo abaixo da frase: para ser lido no início das reuniões da Sociedade dos Poetas Mortos. Eu estava, mais uma vez, assistindo ao filme na casa de um amigo, depois da escola. Levei uma fita de VHS emprestada — o filme gravado da televisão, com comerciais e uma qualidade bastante ruim — porque eu queria pausar o filme na minha cena preferida e anotar o poema que eu amava. Precisei pedir para um amigo porque eu não tinha aparelho de vídeo cassete em casa.

Todo esse processo tinha levado semanas de organização: pegar a fita emprestada com meu primo, conversar com um amigo da escola e saber quando ele teria tempo livre, à tarde, para assistirmos ao filme. Esperar que a mãe dele permitisse a visita, conseguir o dinheiro da passagem emprestado — tudo isso e todos esses dias por causa de um filme e, dentro dele, um poema.

No final da tarde de 27 de agosto de 2001, uma segunda feira, eu voltei para casa a pé — dentro da mochila, as palavras de Thoreau se descolavam da folha de papel: misturadas às falas do professor John Keating que se repetiam na minha cabeça, como papel que se escrevia sozinho, como pano de fundo para todo pensamento e toda sensação. As palavras do filme se entranharam na minha pele como a tatuagem que eu nunca fiz — como ideias derretidas e incorporadas à minha personalidade —, infiltradas e gravadas, indelevelmente, renovadas a todo instante, a partir dos movimentos do meu adolescente coração que bombeava tinta de caneta.

A semana 16 do clube do filme foi, sem dúvida, a mais pessoal e difícil para mim. Além de Sociedade dos poetas mortos, foram indicados outros dois filmes, mas, admito que não dei atenção a eles. Foram filmes que assisti sem ver, porque a memória de quem eu fui não me deixava parar de pensar na força e na extensão do impacto que as aulas de Keating tiveram sobre mim. Durante o filme, eu segurava o meu antigo diário nas mãos: quase vinte anos me separavam do dia que eu escolhi copiar as palavras de um poema e viver de acordo com elas.

Não posso afirmar, com certeza, em qual ponto da vida, em qual momento exato eu decidi ser professora. Os começos são sempre tão opacos — se escondem dentro dos detalhes de um dia banal e, só depois, quando olhamos para trás, eles se mostram aqui e ali, feito pistas, rabiscos sem sentido fora das margens das páginas dos cadernos, nomes e datas aleatórios anotados em um livro: parcos e escassos, finos e reveladores. Não, esse dia não foi o começo. Sim, esse dia, esse filme e o personagem de Robin Williams foram, com certeza, uma das fontes, em palavras, de muitas das minhas ideias, de tanto dos meus ideais e foram também, em afeto, propostas de cumplicidade, convites para uma aventura, promessas de um pertencimento.

Há vinte anos eu copiei um poema no meu diário pessoal e, poucos anos depois, eu o troquei pelos diários de classe. Se os inícios são esquivos, os finais se impõem. O que aquela semana do clube do filme me ofereceu — sem pretender ou imaginar – ao me colocar novamente dentro das reuniões da sociedade dos poetas mortos, foi a oportunidade de redigir, de próprio punho, algumas poucas palavras de despedida, sob o título que encabeça esse texto.

Oh Capitão! Meu capitão! Os professores e professoras não devem ser vistos como heróis, como libertadores de muitos, como salvadores de tantos! Durante quinze anos, eu assisti a incontáveis pequenos rostos que, enquanto celebravam suas formaturas, enterravam suas personalidades, criatividade, espontaneidade, a possibilidade de escreverem uma história e não só a obcecada assinatura em um contrato de trabalho: a vida como sinônimo de carreira.

Oh Capitão! Meu Capitão! A disposição para te seguir me fez acreditar que eu ajudava a formar cidadãos e não só profissionais. Os poemas que você me ensinou a amar me distraíram! Não me deixaram ler nas entrelinhas, encontrar as letras miúdas que, de forma tão insidiosa e venenosa, instruíam que minha função era muito mais adestrar do que ensinar, do que encantar.

Oh Capitão, meu capitão… como eu posso olhar nos olhos de cada um dos alunos e desmentir as palavras de Robert Frost? E dizer que o caminho não percorrido e que faz toda a diferença é só um poema velho e esquecido, fechado em um livro que ninguém mais lê e que a vida deles — de todos eles — já foi pavimentada, escolhida e encaminhada por tantos pais e mães arrogantes, pueris, escravos dos próprios egos e que acreditam que as professoras são serviçais responsáveis não só pelo conteúdo escolar, mas por toda a estrutura psicológica e emocional das crianças e jovens. Que devemos vestir o véu — tal qual mães misericordiosas — para perdoar as faltas, as irresponsabilidades, o mau comportamento, as palavras agressivas, cargas horárias extenuantes e manipulação emocional por parte dos alunos, dos seus responsáveis e das empresas disfarçadas de escolas. Ah capitão, meu capitão… eu fui a professora que teve você como mestre, mas vivo e trabalho no mundo onde o mercado é o educador. 

Aos amados Capitão Keating, Capitão Whitman, Capitão Frost, Capitão Thoreau: nosso encontro, em 27 de agosto de 2001, pode não ter sido o começo, mas é a lembrança original que evoco para entender e admirar grande parte da inspiração para muitas das minhas escolhas de vida. Agora, nosso reencontro marcará o meu recomeço — o momento em que eu assumo para mim mesma que não posso mais ser professora e continuar contribuindo com uma educação cuja única liberdade que tem a oferecer é a de preparar indivíduos capazes de produzir com os conhecimentos que memorizaram e a de consumir os produtos que escolherem.

Peço, humildemente, que não se envergonhem de mim! Meus olhos se voltam, novamente e todos os dias, para a floresta e para a essência da vida — sempre escolherei o caminho não percorrido. Porém, dessa vez, não assumirei o papel de heroína que a sociedade impõe à profissão que eu amei e defendi tanto, mas que, há algum tempo, me esmaga e me transforma em pária: eu preciso demais das palavras para conviver e aceitar todos os acordos mudos que envolvem as relações corroídas entre escola, família, estado e alunos.

A partir daqui, eu irei sozinha e não lutarei para levar mais alguém comigo. Serei somente eu, todos os seus poemas e meu coração — que não é mais o coração de uma adolescente —, mas que ainda é, e sempre será, todo feito de palavras, de inspiração, de ideais altos e de certezas sobre a nossa mais humana composição. Um coração maduro que aprendeu a ser, ao mesmo tempo, aquele que segura a própria pena e que se faz e refaz como fonte de força e de tinta.

Olivia B. de Avelar

Professora, escritora e apaixonada por cinema, é formada em Letras e pós-graduada em Filosofia.