Bemdito

Uma psicanálise que ginga

Os saberes da Capoeira Angola podem ajudar a repensar o estatuto do corpo na teoria psicanalítica
POR Leonardo Araújo

No trabalho IÊ, VIVA MEU MESTRE. A Capoeira Angola da “escola pastiniana” como práxis educativa, Rosângela Araújo, ou melhor, Mestra Janja, como é mais conhecida, uma das primeiras mulheres a receberem a honraria no Brasil, discorre sobre a capoeira tradicional como uma forma de aprendizagem. Ligada à ancestralidade, à oralidade e à comunidade, ela se institui como parte fundamental das tradições africanas no Brasil.

Ao tomar para si a Capoeira Angola como lugar de pertencimento, Janja procura marcar certas diferenças entre esta, linhagem originária de Mestre Pastinha, e a Capoeira Regional, vinculada a Mestre Bimba e que passou por complexos processos de assimilação desde os anos 1930, sendo parte de um projeto de criação de uma ginástica brasileira. Mais do que uma distinção de estilos – a primeira mais lenta e cadenciada; a segunda, mais acrobática e dinâmica – parece haver, entre as duas, marcas que instituem divergências ontoepistemológicas.

Se, por um lado, a Capoeira Angola continua profundamente ligada às tradições, ao pensamento religioso e filosófico de África; a Regional, por outro, construiu negociações intricadas com os valores ocidentais, resultando em uma dinâmica de massificação que, de certa forma, a tem distanciado das “origens”, a ponto de se verificar o crescimento de grupos de “capoeira gospel” nos últimos anos. 

No entanto, mais do que fazer um juízo de valor a respeito dos dois estilos, o que Janja busca é aprofundar os ensinamentos propiciados pela dança guerreira tradicional. É nesse sentido que a professora e capoeirista propõe entrarmos na roda de angoleiros para descobrirmos que gingar “mais que uma atitude corporal, configura uma filosofia de vida. Metáfora e metafísica” (2004, p. 22).

Como operador somático e conceitual, portanto, ginga dá ver como, ao instituirmos outras relações corporais com “indivíduos e lugares” (p. 26) por meio do jogo, constituímos diferentes maneiras de interação (ou intra-ação, para usar o conceito de Karen Barad) com as coisas. Ao assumir o corpo em movimento como lugar privilegiado de produção da realidade, a capoeira destitui a clivagem entre corporeidade e mente, permitindo resituar a maneira pela qual a primeira é compreendida na epistème moderna e nos discursos e saberes dela tributários. Dessa forma, tomada em toda sua profundidade e potência, os saberes de corpo da capoeiragem, junto às ativações que é capaz de instituir, podem ajudar a jogar nova luz sobre questões ainda pouco exploradas. 

No artigo A estátua, o autômato e o cadáver: a neutralização do corpo no pensamento de Jacques Lacan, Richard Simanke vai apontar o problemático estatuto conferido ao corpo no pensamento do psicanalista francês, ao mostrar que sua evocação corresponde, na urdidura da teoria, a tentativas de despotencialização deste, estratégia que o filósofo vai chamar de “neutralização”. 

Em um primeiro momento do pensamento lacaniano, o corpo compareceria como imagem, organizado a partir do esquema proposto pelo conceito de “estádio do espelho”, tornando-se próprio por meio da representação para o Outro. A seguir, no momento em que o simbólico ganha proeminência, a corporalidade aparece como o real constituído pelo trabalho do significante na produção do sujeito, isto é, suporte da letra. Finalmente, segundo Simanke (2016), quando o registro do real é alçado a primeiro plano com o conceito de gozo, em uma tentativa de conferir outro estatuto à corporalidade, novas estratégias de neutralização se impõem, tanto pelo recurso a instrumentos de formalização atualizados (objeto a), como pelo regresso a formulações anteriores. 

Ainda nesse sentido, como afirma Francisco Ronald Nogueira (2017), ao desconsiderar, de certa maneira, a agência do corpo, Lacan se vincula não só a certo cartesianismo, como também à teologia medieval, em que a corporeidade era entendida como suporte da alma, matéria inerte a ser moldada pelo trabalho do espírito. 

Trazida para a roda da psicanálise, “ginga” encena uma compreensão performativa da corporeidade, em que esta deixa de ser suporte material do significante, para ser assumida como local de produção (imaginária, simbólica e real). A capoeira tradicional e as pedagogias dela decorrentes, constituindo relações de parentesco com a “pastiniana”, podem ensinar os psicanalistas a jogar com o corpo de uma nova forma, ao conferir a este outro estatuto de efetividade na formulação de uma teoria do sujeito. Um convite para o contato com a beleza da Angola. Como diz a cantiga, “Jogo de dentro, jogo de fora / Jogo bonito, este jogo é Angola”.  

Leonardo Araújo

Psicanalista, é mestre em comunicação e doutor em sociologia, com pesquisa em corpo, arte e política.