Madres paralelas: as cores de Almodóvar
“Não há história muda. Por mais que a queimem, que a dilacerem, por mais que mintam, a história humana se nega a calar a boca.”
Eduardo Galeano
Comecemos pelo fim: a citação de Eduardo Galeano, que abre a coluna de hoje, é mostrada na tela ao final do belíssimo novo filme de Pedro Almodóvar “Mães Paralelas” – 2021, disponível na Netflix.
Antes da estreia do filme, quase toda a filmografia do diretor espanhol começou a ser disponibilizada na plataforma de streaming – um prelúdio ou uma espécie de preparação de ares para que o grande público recebesse por meio de uma plataforma tão acessível todas as cores de Almodóvar a que temos direito: vibrantes, ousadas, contestadoras, politizadas, inclusivas e – para minha maior alegria – poéticas.
Poesia à moda de Almodóvar é linguagem visceral e profundamente humana e eu que sempre me debato com o incômodo de vivermos em tempos de muito cinismo e cinema insosso e repetitivo achei essa enxurrada fílmica um presente e uma corrente de ar fresco e multicolorido.
O subtítulo dessa coluna faz referência à letra da música “Esquadros”, da cantora brasileira Adriana Calcanhoto: “Eu ando pelo mundo prestando atenção em cores que eu não sei o nome, cores de Almodóvar, cores de Frida Kahlo, cores. Passeio pelo escuro eu presto muita atenção no que meu irmão ouve…” Já escrevi aqui sobre a cinebiografia de Frida Kahlo – tão colorida e profunda e íntima em seus quadros quanto Almodóvar em seus filmes.
O que Adriana canta, com sua tão bonita voz, sempre me fez entender essa mensagem da seguinte forma: é a arte (e para algumas pessoas a falta dela) que nos dá o tom e as cores do que vemos não só nas telas dos quadros e do cinema, mas, sobretudo, de como vemos o mundo. Sem essas cores, passeamos no escuro, perdidos, repetindo slogans e propagandas – sempre envoltos em uma atmosfera obtusa e opaca que somente de longe nos lembra o que a vida é e do que ela é feita.
A vida, eis mais uma obra de Almodóvar sobre ela. A maternidade, o desejo, a guerra, os relatos ancestrais: as pulsões que nos levam a resistir e viver enquanto somos lançados de um lado para o outro entre amores e violências. Nada é óbvio em Almodóvar – porque nada é óbvio na existência humana quando rasgamos nossas hipocrisias e afetações e encaramos, de frente, aquilo que realmente somos.
Depois de começar pelo fim, pretendo retornar ao começo: o cartaz do filme. Antes de assistir a Mães Paralelas, fiquei hipnotizada pelo seio feminino em formato de olho que estampa, sobre um fundo vermelho vibrante, a capa e o convite para assistirmos ao filme. Além de suas produções em si, Almodóvar nos provoca antes mesmo de o filme começar.
O que vemos ali? Uma gota de leite brotando de um bico de peito em lactação em um fundo vermelho cor de sangue com referência ao parto? Ou um seio de mulher em recorte de pálpebra que chora e que nos faz lembrar o sangue das vítimas das guerras que já cortaram esse mundo? Maternidade e guerra: isso é Almodóvar. Ana e Janis são duas mulheres que se conhecem em uma maternidade quando ambas estão prestes a dar à luz.
Depois desse encontro, as duas veem suas vidas entrelaçadas para sempre, tanto em direção ao futuro – nos acontecimentos que assistimos com relação às suas duas filhas – quanto ao resgate do passado, quando Almodóvar começa a nós apresentar os relatos de muitas gerações de mulheres espanholas que nos levam a encontrar os antepassados de todas as personagens envolvidas na trama: os mortos durante a guerra civil espanhola, que aconteceu entre os anos de 1936 e 1939, e que continuam enterrados por todo aquele país sem que suas famílias saibam exatamente onde.
Todos nós – homens e mulheres – que estamos vivos caminhamos sobre a terra onde enterramos nossos mortos. Esse dia chegará para cada um de nós: o dia de enterrarmos nossos avós e nossos pais e, também e inexoravelmente, o dia em que nós mesmos iremos deixar essa vida para cedermos espaço às gerações futuras.
Mães Paralelas é um filme sobre os limites da nossa existência: onde começa nossa história? Na hora do parto? No momento sexual da nossa concepção? Ou ela começa muito antes de tudo isso acontecer, com as lutas dos nossos antepassados, com aqueles que morreram para que seus familiares pudessem viver e criar as filhas e filhos e netos? As fotografias dos avós e bisavós e trisavós que estampam as paredes das casas contam a história de Janis e de todas as mulheres daquele país e de todos os países. Contarão, também, a história da pequena Cecília, uma das filhas que nascem quando o filme começa. E contarão, ainda, a história das filhas e filhos de Cecília. E de seus netos e, assim, a existência que não pode ser contida se arremessará em direção ao futuro, indefinida e de forma imprevisível.
Cinema, ancestralidade, crimes de guerra, desejo, maternidade, sexo, mentiras, adultério, fama, violência, divórcio, casamentos, política e feminismo. As cores de Almodóvar são as cores com que cada um de nós pinta e enxerga a vida. Nós podemos fechar os olhos para elas e passarmos os nossos anos sobre essa terra completamente cegos e no escuro. Podemos viver nossos anos sem nos perguntarmos de quem são os ossos que dormem sob nossos pés e sem nos preocuparmos com o legado que nossas ações deixarão para os que vierem depois de nós. Podemos escolher ver a vida em tons de cinza. Podemos escolher não ver – não importa.
A vida se impõe e acontece de forma voraz, pintada de cores rubras, arrastando a todos através dos anos, sem pausa e sem piedade. Felizes são aqueles entre nós que, antes de fecharem os olhos para sempre, conseguem se encantar e se admirar com toda a sua exuberância e força e horror e delicadeza e sensualidade e imprevisibilidade. Sem começo certo e com sua perpetuação garantida: tudo está acontecendo agora, como um seio farto e cheio de leite que, ininterruptamente, nutre a humanidade. Como uma arte tão viva que escapa e escorre para fora da tela e respinga em todos: nos de antes e nos que virão depois. Mas, forte e belissimamente, nos de hoje. Nos de agora, nos que estão vivos – que somos nós.