Espero tua anarquia #2: Casa no campo, rocks rurais
Thoreau se isolou na floresta para viver a boa vida, estabelecendo as bases do anarquismo individualista. Aqui, o homem é seu próprio senhor
Jáder Santana
jaderstn@gmail.com
Henry David Thoreau (1817-1862) tinha 27 anos quando jogou tudo pelos ares e se refugiou em uma cabana isolada às margens do lago Walden, no estado de Massachusetts, Estados Unidos. Escolheu terreno que pertencia a Ralph Waldo Emerson, importante filósofo transcendentalista, movimento que, entre outras coisas, exaltava as potencialidades do indivíduo em um cenário de intimidade com a natureza. Construiu casa para si e galpão para os alimentos que plantava. Fazia o próprio pão, costurava as próprias roupas. Um dia, em visita à cidade para recolher no sapateiro os sapatos que havia encaminhado para conserto, foi preso. A acusação: não pagamento de impostos. Liberado na manhã seguinte, buscou seus sapatos, voltou ao bosque e começou a rabiscar as linhas que seriam reunidas em A desobediência civil.
Para entender o pensamento de Thoreau e os argumentos que o levaram ao isolamento, é preciso reconhecer que havia algum grau de misantropia em seu comportamento. Sua crítica aos seus concidadãos e amigos, em particular, e ao homem moderno, em geral, é ácida e toca em temas que permanecem atuais – ele fala de racismo, propriedade e direitos humanos. “Constatei que sua amizade era só para os bons momentos; que eles não se dedicavam muito a praticar o bem; que eram uma raça distinta da minha, por seus preconceitos e superstições; que, em seus sacrifícios pela humanidade, não arriscavam coisa alguma, nem mesmo suas propriedades; que, afinal de contas, eles não eram nada nobres, pois tratavam o ladrão da mesma forma que este os tratara, e esperavam salvar suas almas ao cumprir certos ritos exteriores e proferir algumas orações, e ao trilhar de quando em quando um determinado caminho reto, embora inútil”, escreveu.
Thoreau falava do indivíduo, e essa aparente indiferença pelo coletivo é característica básica do que se convencionou chamar de anarquismo individualista. Seu foco é a formulação de diretrizes teóricas e práticas de aplicação individual – o benefício coletivo aparece como consequência dessa assimilação. Diz, por exemplo, que o homem não tem a obrigação de se dedicar à erradicação dos males, mas que é seu dever manter as mãos limpas e recusar apoio prático ao que é errado. E que se esse homem escolhe se dedicar a outros planos e atividades, deve garantir, no mínimo, que não estará contribuindo para a miséria do outro, de forma a deixá-lo livre para que ele também possa perseguir seus objetivos. Assimilar essa ideia e mover-se em sua direção seria prova de racionalidade. Quando se recusa o racional, aproxima-se do animal: “De fato, a vida do gado, como a de tantos homens, não é senão uma espécie de atividade mecânica; eles movem um quadril de cada vez, e o homem, mediante seu mecanismo, encontra-se no meio do caminho com o cavalo e o boi.”
Falar de racionalidade e animalidade é a porta de entrada para suas reflexões sobre liberdade, e ele provoca – temos a liberdade do escravo ou a liberdade de ser, de fato, livres? Para Thoreau, a liberdade política seria meio para a liberdade moral. Então, quão livres somos quando, mesmo que não nos sintamos representados, somos obrigados a pagar impostos injustos? O que diz sobre nós essa tributação sem representação? Em nome de sua liberdade, de sua racionalidade constituída e conquistada, Thoreau preferiu dormir na prisão a ter que pagar impostos. Foi liberado quando teve a fiança coberta por uma prima distante.
Se somos obrigados, enquanto indivíduos, por força da engrenagem das instituições autoritárias, a agir como perpetradores de injustiças, recomenda Thoreau: viole a lei. “Deixe que sua vida seja uma contra fricção que pare a máquina. O que eu tenho a fazer é cuidar para não participar das mazelas que condeno. Um homem não tem obrigação de fazer tudo, mas alguma coisa; e o fato de não poder fazer tudo não o obriga a fazer alguma coisa errada. Assim é toda mudança para melhor, como o parto e a morte, que convulsionam o corpo.”
Para Thoreau, as instituições de autoridades reunidas no aparato estatal dispõem somente de força física, seu valor único, faltando-lhes inteligência e honestidade. Por isso, o Estado jamais poderia confrontar intencionalmente a consciência intelectual e moral do homem, dedicando-se somente ao que pode: destruir seu corpo e sentidos. “Só podem me coagir aqueles que obedecem a uma lei mais elevada que a minha”, escreve, referindo-se não às leis do direito civil, mas a uma categoria mais elevada, espiritual, a consciência do sujeito. Faz parte dessa elevação o espírito de luta: “Esta não é uma época de tranquilidade. Já esgotamos toda a liberdade que herdamos. Se quisermos salvar nossas vidas, devemos lutar por elas.”
Em seu anarquismo individualista, Thoreau contrapõe a moral estabelecida à consciência individual. “Será que o cidadão deve, ainda que por um momento e em grau mínimo, abrir mão de sua consciência em prol do legislador? Nesse caso, por que cada homem dispõe de uma consciência?’’, provoca, para em seguida dar sua resposta: “penso que devemos ser primeiros homens, e só depois súditos”. Nos EUA do século XIX, Thoreau fazia eco ao discurso anti autoridade do russo Mikhail Bakunin, protagonista da primeira parte desta série. E vai além, afirmando que sua única obrigação é a de fazer, em qualquer tempo, o que julga ser correto.
Quando fala de eleições, coloca a instituição do voto obrigatório como mecanismo de um sistema de aparências e conveniência que tem “um leve matiz moral”. Depositamos nosso voto de acordo com nossa concepção de correto e justo, mas não estamos vitalmente envolvidos com a vitória do que é certo. A decisão, deixada para a maioria pelas regras democráticas, escapa de nossas mãos. Somos isentos dessa responsabilidade enquanto indivíduos. “Mesmo votar pelo que é correto não é o mesmo que fazer alguma coisa por ele. É apenas expressar debilmente aos outros o desejo de que o certo prevaleça”, afirma. O ato de depositar seu voto não seria, então, suficiente. Thoreau afirma que “o destino do país não depende de como votamos nas eleições – nesse jogo o pior dos homens se equipara ao melhor -, não depende do tipo de papel que colocamos na urna uma vez por ano, mas do tipo de homem que cada um de nós coloca na rua ao sair de casa a cada manhã.”
Enquanto reafirma o que deveria ser o dever do homem sábio – não deixar o que é correto à mercê da sorte -, reforça que há pouca virtude na ação das massas e toca em tema crucial para a sociedade norte-americana da época, a escravidão. “Quando a maioria finalmente votar pela abolição da escravidão, isso se dará porque a escravidão lhe é indiferente, ou porque terá restado pouca escravidão a ser abolida por seu voto”. E se Thoreau critica a hipocrisia da massa dominada, não mede as palavras para apontar as falhas de um governo que “crucifica Cristo, excomunga Copérnico e Lutero e declara Washington e Franklin rebeldes”.
Habituado ao ambiente da prisão, e prodigioso ao relacionar sua experiência com suas reflexões sobre a consciência do homem livre, Thoreau diz que “em um governo que aprisiona qualquer um injustamente, o verdadeiro lugar para um homem justo é também a prisão.” Afinal, para combater a injustiça com eloquência e eficácia é preciso ter experimentado um pouco dela. Das reflexões sobre a prisão, Thoreau salta para a força das minorias injustiçadas, afirmando sua impotência quando conformada à maioria, mas sua força irresistível quando intervém com todo o seu peso – “Quando o súdito recusa sua submissão e o funcionário se demite do cargo, a revolução se consuma”. Mais uma vez, a importância dos atos individuais de justiça.
Quando escapou de sua cidade natal, Thoreau escreveu: “Quero uma natureza selvagem cuja visão nenhuma civilização seja capaz de suportar.” Antes de qualquer coisa, sua fuga foi uma tentativa de fixação e usufruto consciente do presente. Thoreau dizia que não podia dar-se ao luxo de deixar de viver o presente, e que é abençoado, entre os mortais, aquele que não perde a vida remoendo o passado. A jornada de Thoreau era uma tentativa de negação da realidade industrial capitalista e de readaptação aos ritmos da natureza.
A fuga de Thoreau para os bosques de Walden é o capítulo mais famoso de sua história. “Fugi para os bosques porque desejava viver deliberadamente, encarar apenas os fatos essenciais da vida, e ver se não seria capaz de aprender o que ela tinha a me ensinar, para que, quando eu viesse a morrer, não descobrisse que tinha deixado de viver. Eu não queria viver o que não era vida, pois viver é tão precioso; tampouco queria me resignar, a menos que fosse totalmente necessário. Queria viver profundamente e sugar toda a polpa da vida, viver de modo tão vigoroso e espartano a ponta de desbaratar tudo o que não fosse vida, abrindo e limpando uma larga clareira, para encurralar a vida num canto e reduzi-la aos termos mais básicos, e se ela se mostrasse vil, ora, então eu enfrentaria toda a sua genuína vileza, e a denunciaria ao mundo. Ou, se ela fosse sublime, eu o saberia por experiência própria e seria capaz de fazer um relato verdadeiro disso em minha próxima dissertação.”
As elucubrações de Thoreau em Walden são tão fascinantes que é difícil referenciá-las sem citar o texto exato. O pensador nos ensina a não deixar que nossa vida se dissipe em ninharias, diz que o homem honesto não precisa contar além dos dez dedos das mãos e, em casos extremos, os dos pés, “e que se dane o resto”. Nos incentiva a reduzir nossas atividades a duas ou três, a registrar nossa contabilidade na unha do polegar, a desenvolver as sensibilidades de nossa bússola interna.
No distante século XIX, fala com fervor sobre o excesso de informação. “Depois de uma noite de sono as notícias são tão indispensáveis quanto o café da manhã. ‘Por favor, diga-me qualquer novidade acontecida a um homem em qualquer parte do globo’ – e enquanto toma seu café e come seu pãozinho, ele lê que um homem teve os olhos arrancados nesta manhã no Rio Wachito. Sem sequer sonhar que, enquanto isso, ele vive na escura, imensa e insondável caverna deste mundo, e não tem, ele próprio, mais do que um rudimento de olho.”
Ao invés de nos perdermos no oceano de notícias, recomenda a calmaria da atenção plena. “Vamos levantar cedo e jejuar, ou tomar café da manhã suavemente e sem inquietação; que os companheiros venham e partam, que os sinos toquem e as crianças gritem – estejamos decididos a viver plenamente o dia. Por que deveríamos sucumbir e ser levados pela corrente?” Ao invés disso, Thoreau defende que a mente deve ser vista como uma espécie de santuário e lamenta as vezes que chegou perto “de deixar entrar em minha mente os detalhes de algum assunto trivial”. Nos exorta a impedir que os rumores, as bobagens, as fofocas invadam o terreno que deve ser consagrado ao pensamento.
Mas a fuga para seu refúgio natural não interrompeu a fina produção intelectual de Thoreau. Seus comentários sobre a imposição e os limites da propriedade privada, surgidos nesse período, são tocantes e impressionantemente premonitórios. “Atualmente, nestas minhas redondezas, a melhor parte das terras não consiste em propriedade privada; a paisagem não tem dono, e o caminhante desfruta de relativa liberdade. Mas é possível que chegue o dia em que as terras sejam fracionadas nas chamadas áreas de lazer, nas quais apenas uns poucos usufruirão de um lazer estreito e exclusivo – nesses dias, as cercas se multiplicarão, bem como as armadilhas pega-ladrão e outras engenhocas concebidas para confinar os homens à estrada pública.”
Quando fala de suas práticas alimentícias, insinua pensamento que mais tarde seria aprimorado pelo ativismo vegano. “Eles comem o que geralmente é usado para alimentar o fogo. Isso provavelmente é melhor, para formar um homem, do que carne de boi gordo e de porco de matadouro.”
Explorando as exigências e ofertas da vida rural, Thoreau repensou suas concepções de trabalho. Em certo ponto, escreveu que o trabalhador não deveria “simplesmente ganhar a vida”, mas fazer bem certo trabalho. E chama chefes e empresários à responsabilidade: no melhor dos mundos, as cidades pagariam tão bem seus trabalhadores que eles não sentiriam que trabalhavam para finalidade inferior, como a mera subsistência, mas sim para fins morais.
Indo além, louva os trabalhadores livres, os que dedicam seus esforços para o próprio crescimento. “É possível levantar dinheiro suficiente para fazer um túnel numa montanha, mas não se pode levantar dinheiro suficiente para contratar um homem que esteja entregue a sua própria ocupação”. Diz, em seguida, que o “homem eficiente e valioso faz o que é capaz de fazer, que a comunidade lhe pague por isso ou não. Os ineficientes oferecem sua ineficiência a quem pagar a maior remuneração, e estão sempre na expectativa de obter um cargo público.”
Em sua vida nos bosques, Thoreau descobriu que não deve haver antagonismo entre trabalho e tempo, mas sim uma sobreposição simbiótica. “Se eu vendesse à sociedade tanto minhas manhãs como minhas tardes, como a maioria parece fazer, estou certo de que, para mim, não restaria nada que fizesse valer a pena viver. Não há maior trapalhão do que o que gasta a maior parte de sua vida empenhando-se em ganhar a vida.”
Habituado ao seu novo estilo de vida – que, ao contrário do que se pode pensar, não duraria para sempre -, Thoreau recusa o sentido pejorativo que se atribui ao provincianismo. “Somos provincianos porque não encontramos nossos valores em nossa própria terra, porque não veneramos a verdade, mas os reflexos da verdade, porque somos deformados e reduzidos por uma devoção exclusiva aos negócios, ao comércio, à manufatura, à agricultura e coisas do tipo, que são apenas meios e não fins em si mesmos”, escreveu, entrando para a história da filosofia e da política como um dos mais intensos e originais pensadores do século XIX.
Jáder Santana é jornalista e editor do Bemdito. Está no Instragam e Twitter.
Leia as outras partes da série
Espero tua anarquia #1: A culpa de Deus
Espero tua anarquia #3: Expandir a jaula
Serviço
A desobediência civil
Henry David Thoreau
152 páginas
Editora Penguin, 2012
Preço: R$17,90
Walden
Henry David Thoreau
336 páginas
Editora L&PM, 2010
Preço: R$22,00
Henry David Thoreau
Marie Berthoumieu e Laura El Makki
145 páginas
Editora L&PM, 2019
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