Bemdito

O guardador de jambos

Há um poema escrito em cada esquina
POR Iana Soares

Há um poema escrito em cada esquina

Iana Soares
ianascm@gmail.com

Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores? 
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar, 
A nós, que não sabemos dar por elas. 
Mas que melhor metafísica que a delas, 
Que é a de não saber para que vivem 
Nem saber que o não sabem?

Trecho de “O guardador de rebanhos”, 
de Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa

Na minha cabeça, tenho um caderno para catalogar espécies raras de seres humanos. Anoto tudo para que um dia reapareçam ao acaso e eu me espante ao lembrar que, Meu Deus, existe gente assim no mundo. O homem-aranha do semáforo da Jaime Benévolo com Treze de Maio, que amarrou um tecido nas árvores e pode ser visto voando a mais de dois quarteirões, é uma dessas criaturas que agora pula no meu juízo, por exemplo. Se eu fosse poeta, organizaria tudo em versos. 

Recentemente, acrescentei a este inventário uma pessoa que recolhe os jambos da calçada e os coloca em cestinhas para doar aos que passam. Organizadas em uma mesa na esquina da Padre Barbosa de Jesus com a Conselheiro Tristão, mais de 30 frutas estavam prontas para ser levadas por quem se interessasse, sem precisar perguntar ou pedir permissão. Para não restarem dúvidas em relação ao que era ofertado, colocou uma placa e escreveu bem desenhado: JAMBO. Registrei apenas o gesto, sem rosto, nome ou ambição. 

Avistei essa arrumação durante uma breve pausa no apocalipse que atravessamos. Perdi o tapete cor-de-rosa que antecede a fruta, mas, depois de duas eternidades sem sair de casa, encontrei aquele pequeno portal. Em 1993, os pivetes do condomínio juntávamos castanhola e jambo no banco da pracinha. Alguém dizia que podíamos comer e nós, impregnados de asfalto e muros, nos olhávamos entre a desconfiança e o desejo. Bastava o primeiro menino dar uma mordida, depois de esfregar rapidinho na bermuda, e todos imitávamos a coragem. Liberdade dava em árvore. 

Em 27 de julho de 2020, fiz quatro fotos da mesa e logo me perdi nos sentidos íntimos das coisas, na beleza do gesto de quem escolheu uma toalha azul para enfeitar a oferenda e na gentileza tão rara em dias de pressa. Se eu fosse Alberto Caeiro, teria dado uma bela mordida para celebrar a existência do fruto, sem pensamentos. No entanto, estou hoje dividida entre a lealdade que devo aos jambos do outro lado da rua, como coisa real por fora, e a sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro. Sempre fui mais Álvaro de Campos, confesso. Quem guardou as frutas só pode ter sido o Esteves sem metafísica. Preciso conhecê-lo.

Iana Soares é jornalista e fotógrafa. Está no Instagram.

Iana Soares

Jornalista, fotógrafa e professora, tem mestrado em Criação Artística Contemporânea pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Barcelona e atualmente coordena o Programa de Fotopoéticas da Escola Porto Iracema das Artes.