Sexo, mentiras e redes sociais
O bolsonarismo é a história do Brasil, sempre esteve a circular em toda parte, das nossas camas às nossas músicas, e falhamos em não combatê-lo
Humberto Pinheiro
hpf1808@gmail.com
Jair Bolsonaro é um vagabundo. Paulo Guedes é outro vagabundo. Todos que votaram, participam, apoiam, defendem, justificam, relativizam esse governo são vagabundos. São autoritários e estúpidos. São fascistas. Mas não podem ser vistos como uma surpresa nacional, como uma novidade. Eles sempre estiveram aí.
O bolsonarismo é a história do Brasil, é o nosso enigma resolvido, no mesmo sentido, como disse Walter Benjamin, que o fascismo foi o enigma resolvido da Europa. Aliás, tanto num caso quanto no outro, essas charadas já estariam óbvias há muito tempo, com a claridade de vários desastres. Mas nos recusávamos a chamar a coisa pelo nome.
Desviávamos liricamente do que estava mesmo acontecendo. Eram apenas a nossa cultura, o nosso jeito, o nosso amor, a nossa maneira de ser próximo; nossa maneira de preservar valores, de defender a família e a honra, de povoar, de se emocionar, de rezar, de sermos um povo. Eram apenas os nossos parentes, os nossos vizinhos, as nossas intimidades. Sentíamos e reconhecíamos assim, quando então deveríamos berrar que tudo já era barbárie, e que muita coisa que somos e temos hoje se esmerou na esteira dela.
Mas desviamos e aliviamos a barra pesada, a da nossa casa, da nossa rua, a da nação. Falávamos de ciclo do açúcar, de economia de exportação, de industrialização, de agronegócio. Mas não chamávamos tudo isso de violências racial e sexual, de sentido, de sentimento. Falamos de comércio internacional e de empreendimentos multinacionais, em vez de falarmos de tráfico de pessoas, trabalho escravo contemporâneo, exploração de corpos. Sabemos fácil nos acomodar (e nos acariciar) nos lugares de pai, mãe, filho, marido, esposa, namorados, consumidor, investidor, mas nunca como cúmplices daquelas perversidades. E enquanto seguíamos sem querer saber ou admitir saber o que pra valer estava acontecendo, éramos e somos colaboracionistas de múltiplas crueldades. Cooperávamos e fingíamos (imaginávamos?) que não.
A história do Brasil é uma história de tortura de corpos, de experimentos políticos e científicos que contribuíram decisivamente para a produção de hierarquias e desigualdades sociais. Enquanto colônia e nação escravocrata, o Brasil foi um grande celeiro do que depois seria conhecido nominalmente como fascismo europeu. Pois os campos de concentração foram também aqui. Os genocídios foram aqui. As eugenias foram aqui. Ou o que era então uma senzala?
O que significava expandir fronteiras, engrandecer a economia, construir uma cidade? Significou inferiorizar, subjugar, matar os corpos de negros, índios e mulheres, por exemplo. O Brasil é hoje um grande laboratório de um governo da morte porque sempre foi um ensaio, um teste, uma prática dessa política, institucional e cotidiana, maior e menor. Mas ainda mal contamos esses fatos, pouco representamos essas facetas na ficção, no cinema, na telenovela, nos museus. Não colocamos na mesa essas narrativas de sofrimento e de sangue. Não nos educamos sobre elas.
A propósito, nossos livros didáticos foram omissos, complacentes, bonzinhos demais, e agora estão aí pagando o preço do patrulhamento, da censura de um bando de milicianos morais e seus capachos e internautas semianalfabetos. Lembro que muita mobilização de voto no Bolsonaro em 2018 veio de uma fantasia de um material escolar para crianças. E esse delírio cresceu na trajetória da nossa covardia intelectual. Porque há muito tempo deveria ser obrigatório uma educação sexual em todos os níveis escolares, como matéria sobre diversidade de sexo e gênero, sobre violências sexuais, sobre misoginia, homofobia, transfobia, relacionamento abusivo, estupro marital, o que permitiria, inclusive, muitas crianças e adolescentes entenderem desde cedo que a mamãe é abusada pelo papai.
Porque sempre foi urgente uma educação sexual crítica, democrática, inclusiva contra uma educação sexual fascista, que é a que normalmente as famílias oferecem aos seus, principalmente para que ela se mantenha como tal. Todo esse investimento contra essa outra perspectiva educacional não vem de uma vontade de proteger as criancinhas. O que eles querem é se proteger a si mesmos, seus domínios e privilégios. Bloquear essa discussão nos termos de patologia ou crime é uma estratégia de preservação do controle tradicional dos corpos, de um tipo de monopólio para os seus usos e abusos, sob o pressuposto de uma verdade natural do sexo.
Aliás, não é por acaso que a sexualidade permanece no núcleo das campanhas bolsonaristas, sempre usada para atacar, deslegitimar, desautorizar espaços e discursos em que ela seria (ou deveria ser) pensada diferentemente. Mas essa expedição boçal não é própria da brasilidade. As nossas relações modernas de poder foram forjadas com a invenção do sexo como centralidade da vida, como eixo fundamental na produção de existências para a efetividade de várias formas de controlar as representações, os movimentos, os desejos.
Por isso que, tão pertinente quanto discutir as instituições jurídicas, burocráticas, empresariais e bélicas do autoritarismo é preciso pensar nas configurações do que queremos e sentimos como prazer. É necessário encarar o que chamamos de intimidade como formas e formações da tirania. É preciso falar da experiência colonial como uma questão de inconsciente e vontade.
Com isso, precisamos saber inverter a nossa sensibilidade para o que nos surpreende. Devemos parar de chamar Bolsonaro de “surpresa”, de ocasião do inesperado, de uma emergência do “porão da ditadura”, da ascensão do “baixo clero”. O bolsonarismo sempre esteve a circular nos altares, nos salões, nas salas, nos quartos, nas mesas, nas camas, nos brinquedos e nas brincadeiras, nas confidências de governos e de casais, nos hinos, nas músicas e nas playlists, na saída para o trabalho e na volta para casa, na falta de decoro, mas sobretudo no decoro. O bolsonarismo, como toda versão fascista, é muito uma obra de formas de desejar. Havia muito ele vinha sendo uma escolha nas nossas eleições afetivas.
Humberto Pinheiro é historiador e desenvolve pesquisa em história da sexualidade.