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O rosto que você posta é seu?

Como os filtros das redes sociais adoecem a relação com os nossos corpos e distorcem a forma como nos vemos
POR Geórgia Oliveira

Como os filtros das redes sociais adoecem a relação com os nossos corpos e distorcem a forma como nos vemos

Geórgia Oliveira Araújo
georgia.araujo17@gmail.com

Qual foi a última vez que você postou uma foto sem efeitos ou filtros em alguma rede social? Qual foi a última vez que você viu outra pessoa sem filtro em alguma rede social? Pode parecer bobagem perguntar isso, mas o costume de abrir a tela dos stories do Instagram e já passar para o lado para ver como fica o próprio rosto com os filtros disponíveis é quase automático. Lábios mais carnudos, olhos maiores e maquiados, corpo magro, pele uniforme, sem olheiras, acne ou poros, e muitas vezes até mais clara: tudo isso é possível com filtros e aplicativos de edição que buscam padronizar os rostos e corpos que vão ao ar nas redes sociais. Se antes a manipulação de imagens era exclusividade de programas de edição de fotos caros e difíceis de operar, hoje essas alterações são feitas de forma muito mais rápida e acessível pelo celular. Mas se só nos vemos a partir do que é editado, como lidamos com a realidade?

O “rosto do Instagram”, como passou a ser denominado o conjunto de edições que uniformizam e transformam o rosto dos usuários da plataforma, está presente em vários graus nas diferentes opções de filtro. A maior parte deles é direcionada ao público feminino e utilizada massivamente por mulheres, anônimas e famosas. Não demoramos muito para nos desacostumar com nossos rostos reais e passar a vincular nossa imagem – online e off-line – àquela criada dentro dos aplicativos. Embora o Instagram alegue ter deixado de aprovar filtros que simulem cirurgias plásticas desde outubro de 2019, os que permanecem na plataforma ainda são capazes de modificar bastante os traços da face ou mesmo clarear o tom da pele, tudo em nome do “embelezamento” da própria imagem. Os filtros já influenciam inclusive a busca por procedimentos estéticos capazes de “adequar” o rosto e o corpo reais às imagens modificadas pelos aplicativos.

Além das já conhecidas e tradicionais cirurgias de implante de silicone, lipoaspiração e rinoplastia, os padrões de beleza inspirados pelos filtros do Instagram popularizaram outros procedimentos estéticos cirúrgicos e não cirúrgicos, realizados com o objetivo de adequar o corpo real ao corpo do Instagram. Lipo LAD, bichectomia, harmonização facial, face-lifting, aplicação de botox e ácido hialurônico, preenchimento labial e muitos outros são procedimentos criados ou aperfeiçoados na busca dessa imagem proporcionada pelos filtros. No Brasil, país que mais realiza cirurgias plásticas em todo o mundo, esses procedimentos são divulgados de forma questionável e muitas vezes irresponsável nas redes sociais, inclusive por médicos, muitos deles com milhares de seguidores nessas redes e com status de celebridade.

Não fosse o bastante, essa onda de transformação da imagem atrelada ao uso de redes sociais gerou um nicho bastante específico de atuação para aqueles cuja criação de conteúdo está ligada à própria imagem. Influenciadores e influenciadoras fazem propaganda dos procedimentos estéticos da moda, da última dieta milagrosa, do próximo cosmético que promete mudar sua vida. Na última semana, uma influenciadora com 6,2 milhões de seguidores afirmou ter feito jejum de 7 dias com indicação médica, para promover o “autoconhecimento”. É comum ver registros de “antes e depois” de cirurgias plásticas e procedimentos estéticos feitos por influenciadoras a partir de permuta com médicos, em troca de divulgação dos “resultados” obtidos para outros tantos milhões de seguidores. Mesmo aquelas influenciadoras que advogam por influenciar um estilo de vida saudável, de autocuidado e “beleza real”, aparelhado por muitos procedimentos estéticos para manter o look natural, partem de uma linguagem progressista e feminista para imprimir um mito de estilo de vida e aparência, como analisa Jia Tolentino em seu livro Falso espelho: reflexões sobre a autoilusão.

Milhares de meninas, adolescentes e mulheres vivenciam inseguranças e transtornos ocasionados pelas pressões estéticas, que são amplificadas pelas redes sociais, e sentem-se pressionadas todos os anos a modificar sua aparência. Se o feed é infinito, infinitas também são as possibilidades de encontrar conteúdo destinado a enaltecer um ideal de beleza fabricado especialmente para padronizar fisionomias e corpos e corrigir as falhas rumo à imagem ideal – segundo as tendências daquele momento. De postagens que representam gatilhos para transtornos alimentares à gordofobia e procedimentos estéticos esdrúxulos, é possível encontrar de tudo.

Há alguns meses, encaminharam-me o vídeo de um tatuador que alegava corrigir olheiras em mulheres tatuando um tom mais claro abaixo dos olhos, como se fosse um corretivo permanente, com a sugestão de que eu deveria procurar esse procedimento para parecer menos cansada. Fiquei pensando como seria me submeter a uma intervenção altamente dolorosa e inútil por conta de algo tão comum como olheiras e em como desde então tenho reparado, quase inconscientemente, se elas estão ou não tão aparentes mesmo.

Há diversos perfis dentro das próprias redes sociais que criticam toda essa estrutura de padronização da aparência e da indústria de modificações corporais, promovendo reflexões sobre o uso dos filtros. Campanhas como #dropthefilter e influenciadoras que fazem o caminho inverso, alertando para os perigos de procedimentos estéticos desnecessários e influenciando a construção de uma imagem positiva e saudável sobre nossos rostos e corpos, têm contribuído para as reflexões sobre o tema. Mas será que é possível compatibilizar redes sociais altamente imagéticas, como o Instagram, com o combate aos ideais de beleza impossíveis de serem alcançados e prejudiciais à saúde física e mental, principalmente das mulheres?

Por fim, uma reflexão que me ocorreu enquanto encontrava os caminhos para escrever esse texto. Meus pais ainda guardam pouco mais de uma dezena de álbuns enormes com fotos minhas durante a infância e a adolescência, reveladas em alguma Abafilm do centro da cidade e guardadas com todo cuidado como recordação. Cresci sabendo como eram meu rosto e corpo de verdade – eventualmente, gostando ou não deles – e sabendo também que outras pessoas só veriam minhas fotos se meus pais as convidassem para nossa casa.

Hoje não arquivamos mais fotos em álbuns físicos e crianças crescem aprendendo a mexer em celulares – muitas vezes em contato com redes sociais. Como elas poderão diferenciar a autoimagem da imagem criada pelos filtros e aplicativos? Como elas vão lidar com a exposição de sua vida em redes sociais desde o nascimento? Como será o mundo em que ninguém mais consiga lembrar do que é estar off-line? Não são perguntas para demonizar as redes sociais ou o contato com o mundo online – afinal, essas gerações são e continuarão a ser nativas da internet -, mas para pensar quais habilidades precisaremos desenvolver para sobreviver no mundo em que a existência virtual parece mais real e desejável que a realidade.

Geórgia Oliveira Araújo é colaboradora do Bemdito e pesquisadora na área de violência de gênero. Está no Instagram.

Geórgia Oliveira

Pesquisadora em violência de gênero, é mestra em Direito pela UFC, professora universitária e atua com divulgação científica em pesquisa jurídica no projeto Pesquisa e Direito.