O léxico íntimo de termos impronunciáveis
Passei uma dessas últimas semanas com Natalia Ginzburg. Mais uma autora com quem meu primeiro contato era continuamente adiado. Natalia, Virginia, Patti… Esses nomes próprios — tão fortes, quase indubitáveis, como se até dispensassem sobrenomes — me provocavam alguma hesitação e, sempre que os tocava nas capas dos livros, ou mesmo chegava a empilhá-los e levá-los ao caixa da livraria, acabavam voltando às estantes de onde haviam saído. Ou ao “Salvos para depois” do carrinho de compras virtual. Nunca me considerava suficientemente preparada para elas.
Como mais uma expressão dessa urgência que tem me inquietado por aqui, nelas me lanço, como quem tem evitado o guardar qualquer coisa — de roupas a livros, passando por cursos completamente aleatórios e ideias de projetos há tempo demais adiados — para as “ocasiões especiais” ou o “momento certo”. A sensação, na verdade, é a de que tenho que agarrar a vontade quando ela emite seus intermitentes sinais. A cada dia que passa e percebo que ela permanece aqui, mesmo que indecisa na zona de deriva entre o tudo e o nada, aliviada agradeço em silêncio. E molho os pés em mais uma primeira vez.
Natalia não me dá outra saída a não ser falar, mais uma vez, da força das miudezas.
Do que, não tendo lugar para se abrigar, infiltra-se sob a superfície da pele, permanece na ponta da língua, faz-se caber no injustificado acervo da memória. Pronto para nos surpreender com a sua teimosia silenciosa em, tendo tudo para desaparecer, resistir ao tempo. Resistir aos tempos. Como que, logo o que há de aparentemente mais insignificante em nossos dias, é o que deles, afinal, nos resta?
Li noutro autor, João Anzanello Carrascoza, que as grandes vidas — ou obras — se fazem mesmo é do cascalho das horas cotidianas (ou algo assim, ou algo que em mim chegou assim). Conhecendo Natalia Ginzburg através do léxico de sua família, da minha tão distante, é inevitável pensar no que me desperta ternura, aquela ternura que chega dói, nas pessoas que amo. São as palavras mais simples, as repetições mais bobas, as expressões do rosto e modulações da voz mais imperceptíveis, os hábitos mais automáticos, as manias e os gestos mais inexplicáveis. Percebo como, de quando em quando, a intimidade se dispensa de ser evidente, e, ao mesmo tempo sutil e, bruscamente, me acerta, me assombra, me comove com a graça de sua existência.
Mas também fui perseguida pela constante e invencível indagação do que constituiria o meu léxico familiar. O nosso léxico familiar. Mais precisamente — e só agora digo em voz alta —, ao percorrer as recorrentes expressões da grande família de Natalia, me perguntava: como um suicídio marca um léxico familiar?
Em nossa família, nossa pequena família, já faz mais de dez anos que se repetem palavras comumente ausentes do vocabulário das demais. Inexistiam também no nosso até o invadirem, todas as sílabas de uma vez, carecendo de nota etimológica, verbete sem registro em nossos dicionários íntimos. Incontornável como uma palavra que toma um espaço em maiúsculas, mas vai se instalando em minúsculas, infestando-o, infiltrando-se em todas as brechas de uma existência da qual tenta apoderar-se.
Se meu peito acelera as batidas e encurta o movimento do ar enquanto escrevo, deve ser coisa dessa palavra a inquietar-se por aqui, querendo sair. Não é que, entre nós, ela não tenha lugar: pelo contrário, ela passou a fazer parte dos dias como um indesejado agregado com quem somos obrigados a conviver. Nem sempre foi assim. No começo, outra palavra — aneurisma — tentou substituí-la. Uma palavra fria, segura e inquestionável como um termo médico: dificilmente abriria uma brecha às perguntas irrespondíveis, à curiosidade mórbida, à necessidade desesperada de conferir sentido à morte. Em outras famílias, é outra a palavra-decalque: acidente.
Depois, não sei bem como, a palavra se impôs. Mesmo que se relute em trazê-la à ponta da língua, mesmo que se tente, inutilmente, apagá-la de seu vocabulário ao se recusar a emprestá-la a voz, essa palavra é incontornável, feito tatuagem na testa, como diz minha mãe. Na língua, nos dedos, nos olhos, a palavra se multiplica e se acomoda.
Fazendo-se enunciar através de nós, obriga-nos a conhecer o que se esconde entre suas letras. O que elas produzem quando proferidas em voz alta. Não se diz “suicídio” disfarçadamente. Não se escuta suicídio disfarçadamente. No rol das impronunciáveis, a palavra faz alguns apertarem os olhos e levarem as mãos aos ouvidos, como se não a exprimir oralmente fizesse-a desaparecer do nosso léxico de memórias, e não ouvi-la a fizesse continuar inexistindo na sua lista de pecados e perigos da vida terrena.
Não pode ser só isso. Esforço-me para recordar outros vocábulos, expressões, vícios de linguagem que compõem essa gramática sentimental. Meros barulhinhos têm lugar nesse léxico? Volto ao eco dos passos e às variações entre o som das minhas botas e dos scarpins de saltos baixos de minha mãe. Tento evocar o impreciso e exíguo repertório de histórias contadas e recontadas por aqui. Aos poucos, uma vai puxando a outra: a do macarrão com morangos, a do carrossel de patinhos, a dos biscoitos comidos do chão, a dos pés imundos lavados na cama, a do bolo comido pela cachorra, a dos fogos de artifício caídos na piscina, a do carro atolado nas dunas, a dos figos com feijão…
Alivio-me: elas existem, mesmo que delas eu só me lembre o argumento central. A memória, falha e infiel, não me deixa desenrolá-las. Falta um nome, um detalhe decisivo, um desfecho. Restam as frágeis reminiscências. Aqui, como na família de Natália, a guardiã das histórias é a mãe. Aproveitarei o seu prazer de recontar para tentar reter aquilo que agora me foge. Talvez, um dia, volte aqui com essas histórias.
Mas palavras… As nossas palavras me escapam.
Percebo que, talvez, nenhuma se imponha com presença tão inconteste, manifesta, palpável quase, como aquela. E isso deve embaraçar quem imagina — ou melhor, não quer nem imaginar — como é viver na companhia de uma palavra como essa. Ela poderia resumir toda uma existência?
É inegável: ela rasga um antes e um depois, tanto na vida, como no seu particular repertório de palavras. Mas — e isso também pode ser difícil compreender — a palavra vai nele encontrando lugar e sedimentando-se, até ousando misturar-se com outros vocábulos e arranjar-se em expressões improváveis, enquanto vai, também, deixando-se abandonar do que a cala.
Pode ser intrigante como, em nossa família, a gravidade da palavra suicídio convive com o banal de umas, com o leviano de outras. Precedida de um “prevenção do” ou não, ela incorporou-se às expressões mais cotidianas e domésticas, como “acabou o frango”, “tenho que passar no mercantil”, “vai almoçar em casa?”, “quer café?”, “esse café tem açúcar?”. Ela se mete enquanto decidimos os sabores da pizza (e se a borda recheada será doce ou salgada) ou compartilhamos novas cores de batons (pequenas variações em tons de vermelho).
Segue-se, entre decisões práticas, engodos profissionais, mexericos familiares e resoluções adiáveis, ao cumprimento “que roupa linda!”, que, como se fosse se tornando um rotineiro ritual, tem sido exclamado ao abrir da porta. É curioso também, aliás, que tenhamos continuado a falar de roupas mesmo vestidas de dor. Agradou-me ler sobre a fixação da mãe de Natalia em mandar costurar — costurar e descosturar e recosturar — roupas. E palavras.
Não se trata de morbidez. Nós fazemos uso dessa palavra. E descobrimos: nem tudo, nem todos os nossos cacos, nela cabem. Aliás, quase nada cabe no acervo de palavras que arranjamos para tentar dizer de nós, para sangrar a dor e dançar o encanto, para tapar buracos e abrir caminhos, para exprimir a ilusão de organizar o espanto de (des)conhecer a vida e a morte.
Nós nos tornamos outros no depois dessa palavra, sem, no entanto, nos reduzirmos à ela — como se fôssemos, nós mesmos, o neologismo forçado após a sua brusca chegada. Tivemos que aceitar a impronunciável, aquela que mancha um dicionário, desorganiza uma gramática, debocha de uma rede semântica, evidencia a insuficiência do alfabeto e a precariedade da linguagem — para não nos deixarmos a ela condenados.
Nesse caso, o que não é atualizado na escrita e na fala não está fadado a desaparecer das lembranças. A palavra suicídio tinha que se tornar dizível, para que, sem uma voz a espremê-la, não inchasse dentro de nós. Para que sua mudez não calasse também a possibilidade de invenção de outras palavras em nosso léxico familiar. Em cada léxico íntimo e singular.