Bemdito

Amor e anarquia

Quando deixamos de ser uma floresta de rebelião?
POR Leonardo Araújo
Foto: Reprodução

Assim como muitas pessoas que têm o privilégio de trabalhar em casa, os infindáveis dias trancafiados me fizeram criar uma lista variável de hábitos para me manter minimamente são diante da realidade, que, segundo um grande amigo escritor, tornou-se um fist fucking cravejado de diamantes. Ultimamente, ando percorrendo o catálogo da Netflix aleatoriamente atrás de narrativas que me ejetem, ainda que por algumas horas, das preocupações com a falta de grana, com as contas que se multiplicam, com a crise econômica, com a falta de vacinas e por aí vai.

Em uma das chafurdações insones pela plataforma de streaming, acabei me deparando com uma série da qual nunca ouvira falar, mas cujo título me capturou imediatamente: Amor e anarquia (talvez por serem duas coisas em falta na minha vida e no mundo). Por ela, somos apresentados à história de uma consultora bem-sucedida, Sofie Rydman, mãe de dois filhos e casada com um homem “padrão” – alto, barbado, másculo e com um bom emprego.

Tendo por volta de 40 anos, ela decide assumir o desafio de modernizar uma pequena editora, a qual luta para fazer frente aos “novos tempos”, na tentativa de popularizar a literatura para uma geração de ávidos consumidores de redes sociais. No local de trabalho, as coisas vão caminhando bem a não ser pelas tentativas de Max, um jovem técnico de T.I., de furar uma parede, causando um barulho insuportável à Sofie, que passa a infernizar a vida do rapaz, impedindo-o de completar a tarefa. Após breve discussão, sugere que use a furadeira após o expediente, quando todos já tivessem deixado o prédio. Sem saída, o garoto é obrigado a cumprir a ordem, retornando ao trabalho tarde da noite.

Enquanto se dirigia à parede com o equipamento, Max escuta uns gemidos e dá de cara com Sofie se masturbando, hábito da personagem ao qual somos apresentados logo de início. Tomando cuidado para não ser visto, tira uma foto da situação e, em seguida, passa a chantageá-la a fim de que o deixasse terminar o serviço em paz. Além disso, para que a foto sumisse em definitivo, Sofie teria que pagar a Max, cerca de 20 anos mais novo, um almoço.

A partir daí, começa entre os dois uma série de jogos, por meio dos quais vão tendo que causar situações bizarras, levando à desestabilização do ambiente de trabalho. No meio de tudo isso, Sofie ainda é seguidamente demandada a lidar com as “loucuras” do pai, homem idoso que vive causando confusão pela recusa em lidar com o mundo moderno e com as relações de exploração capitalistas. Ao longo da história, ficamos sabendo que o velho tem um passado de problemas psiquiátricos, tendo sido internado em várias ocasiões.

Com as sequências de jogos e desafios, Sofie e Max começam a se interessar cada vez mais um pelo outro, e a brincadeira vai ficando “séria”. Entremeada à aventura dos dois, descobrimos que a vida da consultora, aparentemente “perfeita”, foi erguida pela assunção do semblante de uma mulher responsável, racional e mesmo fria, abandonando o sonho de se tornar escritora e as identificações recalcadas com as loucuras e rebeldias paternas.

O encontro com Max, no entanto, traz de volta a anarquia para o cotidiano e, com ela, o amor. A mudança faz com que o marido passe a estranhar e a criticar abertamente o comportamento errático e a “infantilidade” da esposa. Já não é a mesma de antes, o que faz despertar no homem o receio de que Sofie possa terminar como o pai, figura rejeitada por ele, em razão da inadequação diante do mundo.

Se, à época em que escreve o livro, o qual tem o mesmo título da série, Sofie se definia como uma “floresta de rebelião”, o casamento, as obrigações familiares e os compromissos da vida adulta vão lhe fazendo murchar, pouco a pouco. O relacionamento com Max é o que vai lhe permitir retomar a conexão com o passado e com aquilo que passara a rejeitar para conseguir ser “normal”. Se a anarquia devolve a paixão à Sofie, esta vai, ao mesmo tempo, alimentando a pulsão de vida da mulher, pintando em vermelho uma existência que, até então, transcorria cinza.

De algum modo, a história da personagem fala das aspirações que largamos em algum momento, trocadas pela ilusão de uma vida segura, planejada e “normal”. Não é isso que deve ser feito quando nos tornamos adultos? Contra essa prescrição, o que a primeira temporada da série nos propõe é o exercício de outra musculatura, a da não conformidade com um mundo diante do qual tudo que resta é a servidão. É essa compreensão que vai tornar possível a Sofie afirmar novamente: “Sou uma floresta agora. Uma floresta de rebelião”.

Leonardo Araújo

Psicanalista, é mestre em comunicação e doutor em sociologia, com pesquisa em corpo, arte e política.