A comida que você pede é um aviso sobre o seu trabalho
Os motoristas e entregadores de aplicativos seguem a rota dos dilemas do trabalho deste século
Paulo Carvalho
paulomarquesdecarvalho@gmail.com
Metade quatro queijos, metade marguerita, com entrega grátis e cupom de desconto disponível de doze reais. Em trinta minutos, meu pedido do domingo estava em uma fila de vários pacotes na portaria do prédio. Ao final, o aplicativo me apresentava a foto de um jovem negro de óculos e camisa branca. Abaixo da foto, uma mensagem. Ítalo Silva quer saber: o que achou da entrega?
No mesmo domingo, a Praça Portugal em Fortaleza era ocupada por cerca de quatrocentos motoristas de aplicativos. Reivindicavam o aumento da tarifa paga por km rodado e melhores condições de segurança, em razão do aumento de assassinato de motoristas durante o trabalho. Nas redes, viralizava o vídeo da Folha de S.Paulo com entrevista de Paulo Gala, líder dos entregadores antifascistas, perguntando: “A pizza deixou de chegar na sua casa quando os aplicativos não existiam?” Seu discurso era contundente: “se você acha que a uberização é um problema dos entregadores, você está errado. Se a revolução industrial avançou para todo mundo, a uberização vai avançar para todo mundo também”.
O século XXI seduzia com a crença em um novo tipo de negócio, apresentado como um movimento social, através de novas conexões, em um discurso fluido entre causa e comércio. Quartos vazios, bicicletas, ferramentas e bens subutilizados poderiam ser ressignificados como fontes de conexão e renda. O “o que é meu, é seu”, lema da economia de compartilhamento, era um chamado de cooperação social para um mundo corporativo mais humano e sustentável.
A Uber surge como um leviatã da tecnologia, um unicórnio instantâneo que redesenhou a forma como as pessoas se deslocam, o uso estratégico de apps e a cultura de startups. O livro A guerra pela Uber, do repórter Mike Isaac, desnuda os bastidores da fundação da empresa, entre conflitos com taxistas, sindicatos, sócios e fundadores, orgias comemorativas pelas metas superadas e o espírito de trabalho dos tech bro e uberettos na coqueluche da indústria da tecnologia.
Cabify, 99, iFood, Rappi, Loggi foram decorrências naturais desse processo, integrados rapidamente ao nosso dia-a-dia. Para o mundo do consumo, um novo estilo de vida com serviços mais intuitivos e baratos, visto que isento de custos sociais. Para o mundo do trabalho, uma oportunidade de trabalho flexível em que desaparece a figura do chefe através de um mandatário dissolvido entre a empresa do aplicativo e o cliente. Para a “lei da destruição criativa”, um reflexo do motor do capitalismo que cria ao mesmo tempo em que destrói antigas estruturas, trazendo novas promessas de trabalho ao transformar desempregados em empreendedores que sequer precisam de ativos para operar, de modo que a solução para falhas do sistema seria resolvido pela livre concorrência e inovações tecnológicas.
Segundo o relatório da Organização Internacional do Trabalho publicado este ano, 96% dos investimentos das plataformas estão concentrados na Ásia, América do Norte e Europa e 70% das receitas concentram-se nos Estados Unidos e China. Os trabalhadores ganham em média de 2 a 3,4 dólares por hora. Hoje, no Brasil, já estamos caminhando para uma estatística de quase dois milhões de trabalhadores de aplicativos, em sua maioria negros, jovens e idosos que perderam seus empregos ou não conseguiram o seu (re)enquadramento no mercado formal. Os motivos pela procura são justificados por não terem encontrado outro trabalho, pela remuneração no aplicativo ser melhor do que outros trabalhos disponíveis e pela flexibilidade do horário da jornada. O excesso de mão-de-obra afeta níveis de renda e condições de trabalho, sobretudo em países que, como o Brasil, são marcados pela informalidade e crises de desemprego. Tom Slee já sinalizava esse fenômeno em um livro sobre o sentimento de traição provocado pela utopia cooperativista da “economia de compartilhamento”, que passou da generosidade do “o que é meu é seu” para “o que é seu é meu”. Esse sentimento e a forma como trabalho é assumido nessa gig economy foram traduzidos para o cinema por Ken Loach, no seu recente Você não estava aqui.
Os desafios jurídicos do assunto são inúmeros, para além da discussão predominante sobre a eventual relação empregatícia entre o trabalhador e o aplicativo. Esse tema, inclusive, ganhou novo fôlego no debate público com a recente decisão da Suprema Corte do Reino Unido, em fevereiro desse ano, que decidiu que os trabalhadores da Uber possuem direitos trabalhistas e não devem ser considerados autônomos. O trabalho plataformizado traz desafios do sistema de resolução de disputas, já que os conflitos com os trabalhadores, muitas vezes por decisões oriundas de algoritmos, são resolvidos na própria plataforma. Problemas trabalhistas clássicos voltam à tona, como os limites de duração de jornada, direitos sindicais, equivalência de condições de trabalho entre homens e mulheres, períodos de descanso, saúde, segurança e aposentadoria. Questões anti-discriminatórias também são discutidas, já que o posto de trabalho, de certa forma, é mantido por livre avaliação do usuário, que pode ser afetada por cor, raça, gênero, sotaques, gostos e características da personalidade do trabalhador.
O tema vem ganhando fôlego, desde 2015, nos debates legislativos brasileiros com propostas na Câmara e no Senado acentuadas com o início da pandemia, em especial após o que ficou conhecido como breque dos apps no ano passado. O número de projetos de lei relacionados a trabalhadores de aplicativos saltou de onze projetos, em fevereiro de 2020, para cinquenta e quatro no final do ano passado. O Brasil ainda não tem lei específica sobre o regime de trabalho por demanda, exigindo enquadramento e adaptações das legislação atuais aos conflitos já existentes na categoria.
Lembrei da resposta que devia ao Ítalo Silva. Esses trabalhadores foram e continuam responsáveis pelo funcionamento do nosso cotidiano durante a pandemia. Eles estão na engrenagem dos novos tempos e entregam à sociedade uma pauta urgente sobre o futuro do trabalho, já que esse paradigma de contrato avança rapidamente para diversos setores profissionais, afetando os alicerces do modo como o trabalho é organizado e regulamentado. Nas avenidas esvaziadas pelos lockdowns, as suas motos e bicicletas de entrega continuam desfilando. O desfile desses trabalhadores invisíveis confirma essa nova onda do trabalho precarizado.
Paulo Carvalho é professor de Direito do Trabalho e doutor em Ciências jurídico-políticas pela Universidade de Lisboa. Pode ser encontrado no Instagram.
Serviço
A guerra pela Uber
Mike Isaac
Editora Intrínseca, 2020
464 páginas
Uberização
Tom Slee
Editora Elefante, 2017
317 páginas
Você não estava aqui (Sorry we missed you)
Ken Loach
101 min