Bemdito

A mística feminina clariceana

Para que mulheres escrevia Clarice Lispector e o que ela teria a dizer às mulheres do nosso tempo?
POR Paula Brandão

Se saíssemos hoje para tomar um cafezinho com Clarice Lispector, o que ela nos diria sobre as questões femininas? Espiando na frincha de uma porta do tempo, abro alas para uma conversa quase anedótica e cheia de conservadorismos sobre como a escritora, usando pseudônimos de Tereza Quadros, Helen Palmer e Ilka Soares, aconselhava mulheres no Correio da Manhã, Comício e Diário da Noite. As recomendações tiveram ampla repercussão no período histórico dos anos 1950 e precisam ser pensados nesse espaço temporal.

“Nunca houve tanto requinte de maquilagem dos olhos como agora”, diz Clarice. O formato do olho é sublinhado, alongado com lápis multicor, rímel verde, azul, violeta e cinza. Além disso, as mulheres imitam as atrizes a usar cílios postiços em qualquer hora do dia, sem a menor atenção para as horas que marcam no relógio. No entanto, nada disso basta para os olhos serem belos: “os espelhos da alma precisam refletir doçura, compreensão, inteligência. Mais importante que os olhos, é o olhar.”

“Se você tiver dinheiro para estar na moda, melhor, mas há mais mulheres elegantes que ricas.” Assim, assevera: pegue um vestido comum e o que a diferenciará das demais será um broche, um colar novo ou uma echarpe com um laço bem dado. “Estar na moda é saber sublinhar a própria personalidade.”

Para as mulheres que trabalham fora, o conselho é que não podem esquecer que têm que enfrentar concorrência das colegas e crítica de estranhos, então, não ande desleixada! (sic). Na sua bolsa deve ter sempre um estojo de pó compacto, batom, pente, um pequeno frasco de perfume, espelho, lenço e um comprimido para dor de cabeça. A boa aparência é fundamental!

Se você estiver muito cansada, precisando renovar o rosto, Lispector lhe dá um truque de lutador de box quando precisa se reanimar para a luta: “Vá ao banheiro, prenda os cabelos, desnudando a nuca. Molhe um pano em água bem fria, e aplique na nuca, várias vezes. Funcionará como um tônico.”

“Quando a idade pedir, use óculos!” Clarice adverte que muitas mulheres não os usam porque poderiam parecer mais velhas contudo, a falta dele promove caretas, rugas na tentativa de enxergar o objeto, e arrebata: “O pisca-pisca, o franzir do nariz, o entrefechar das pálpebras, tudo isso é muito feio de notar-se numa mulher.”

“Não ouse maquiar a sua linda boquinha e soltar sapos tal qual a maldição da fada ruim à linda princesa”. Leia, leia bastante, a maldição moderna é a ignorância tal qual a mocinha bela que, ao ouvir falar de Hemingway, perguntou: qual o último filme em que ele trabalhou?

“Já se foi o tempo…” em que era delicado deixar sempre um pouco de comida no prato, hoje deve-se comer o que se serviu. “Em que se pegava numa xícara erguendo o dedo mínimo, hoje é afetado e de mau gosto.” Em que era praxe recusar um convite várias vezes, antes de aceitar. “Agradeça, aceite e não faça drama.”

No primeiro encontro com o rapaz, nunca vá muito mais arrumada do que é de costume ou com um novo penteado extravagante, pois o rapaz ficará mais chocado que seduzido. Não o faça gastar muito, peça um prato de valor intermediário. “Um último conselho: Não tenha medo de rir, de ser você mesma!”

“Se você dançou demais, divertiu-se demais, livrou-se da tristeza acumulada, agora, ao voltar da festa, trate um pouco de si mesma.” Se os pés doem, banhe-os em água morna, passe talco e estenda-os para cima; besunte o rosto com creme refrescante; coloque duas compressas de algodão com água borrifada nos olhos; não se joque na cama, antes de tirar toda a maquiagem.

Para mãe de adolescentes, sejam suas amigas, escute-as, ajude-as com pequenos problemas íntimos. Conversando conquistará sua confiança. Com inteligência e jeitinho, a fará compreender como a atitude dela de vampe é ridícula. (sic).

Um conselho dado, tarde demais, para essa que vos escreve: “Faça o possível para não se empetecar demais. Também não misture placa de diamantes com três voltas de pérolas, brincos dourados e três pulseiras de ouro em cada braço, além de um anelão de água marinha. Você não é vitrine de joalheiro, nem a Virgem do Pilar.”

Você conhecia essa faceta de Clarice? Poucas dirão que sim. Ela escrevia na esteira das autoras de jornais e revistas americanas que contribuíram para reproduzir uma certa “mística feminina”, tal qual livro homônimo de Betty Friedan.

Trata-se de uma proximidade com aspectos da feminilidade atribuídos como naturais às mulheres, que deviam saber se vestir e comportar, ter uma casa confortável e evitar ser independente demais para não parecer masculinizada. Os artigos clariceanos não tratavam de questões políticas e sociais, mas de assuntos de utilidade doméstica. Como tirar manchas, disciplinar os filhos e esconder a aparência cansada. Para quem escrevia Clarice? Para mulheres jovens, doces, elegantes, inteligentes, casadas e mães. E de pouco tempo atrás…

Paula Brandão

Doutora em Sociologia pela UFC, e professora do curso de Serviço Social (Uece). É pesquisadora na área de gêneros, gerações e sexualidades. Membro do Laboratório de Direitos Humanos e Cidadania (Labvida) e integra o Núcleo de Acolhimento Humanizado às Mulheres em Situação de Violência (NAH).