As árvores que não plantei no caminho
Como enxergar os futuros não realizados?
Iana Soares
ianascm@gmail.com
– Você viaja para reviver seu passado? – era, a esta altura, a pergunta do Khan, que também podia ser formulada da seguinte maneira:
– Você viaja para reencontrar o seu futuro?
E a resposta de Marco:
– Os outros lugares são espelhos em negativo. O viajante reconhece o pouco que é seu descobrindo o muito que não teve e o que não terá.
(Ítalo Calvino em “As cidades invisíveis”)
Não tive filhos, quase escrevi um livro e já plantei árvores. Ao ler, penso que talvez não tenha plantado, porque não posso ter a certeza de que foi uma árvore, verdadeiramente, com os atributos que você necessita observar para nomeá-la assim. Milho, coentro, manjericão, jiboia, cara-de-cavalo, tudo isso eu posso afirmar que plantei. Agora, árvore com caule grosso, maior do que um abraço, e copa frondosa, que dá sombra e narra o tempo pela altura, não. As que quero enumerar não nasceram pelas minhas mãos.
Maio de 2013. Fui ao açude Castanhão fotografar a Velha Jaguaribara que, com os anos de seca, deixou de estar submersa e voltou para perto dos olhos. Registrei uma árvore plantada em um barco, na minha ilusão. Não sabia que, naquele mesmo instante, o André Salgado caía de um prédio em Natal, enquanto também fotografava. Como era possível que aquela fotografia antecipasse uma dor que eu ainda não conhecia?
Fevereiro de 2015. Caminhava por Vilafranca del Penedès, uma região de produção de vinhos na Catalunha, quando parei em frente a outra árvore. Era inverno, as folhas se agarravam aos galhos e eu não me agarrava a ninguém. Observei com a calma que agora me falta. Como se reconhecesse um rosto antigo mas transformado, fiquei parada por um instante maior do que o clique. Como era possível que, com tanta terra e o Atlântico, Jaguaribara e o André estivessem lá?
Setembro de 2007. Conheci um flamboyant amarelo que mora ao lado da casa de Eva e Geise, no assentamento Transval, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, em Canindé. Eu tinha 20 anos e uma câmera miudinha, emprestada, que usava para registrar as experiências do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária. Ontem, quase 14 anos depois, Eva me flagrou ouvindo “Canción de las simples cosas”, no Spotify. Não nos vemos desde o dia em que ela escutou “Mas que nada”, do Sérgio Mendes, em um walkman que eu tinha. Só agora entendi que as outras duas árvores existiram porque enxerguei primeiro esta. Olhar é sempre estreia, adivinhação e reencontro.
Enquanto escrevo, Ítalo Calvino ergue outra árvore diante de mim, sempre a mesma: “os futuros não realizados são apenas ramos do passado: ramos secos”. Consigo guardá-la aqui, ao lado de todas as que ainda não vingaram porque não joguei as sementes na terra.
P.S: Preciso me contradizer. Já plantei um baobá a quatro mãos. Outro dia eu conto como vi o amor nascer.
Iana Soares é jornalista e fotógrafa. Está no Instagram.