Bemdito

As mulheres em Sally Rooney

Chega ao Brasil novo romance da escritora irlandesa Sally Rooney, autora que mergulha na origem sistêmica dos medos femininos
POR Camille C. Branco
A escritora irlandesa Sally Rooney (Foto: Chris Boland)

Sally Rooney é um jovem fenômeno editorial irlandês, cujo terceiro romance acaba de despontar em terras brasileiras sob o título de Belo mundo, onde você está. O fato de se tratar de uma afirmação, e não de uma pergunta, modifica o sentido da frase. Se fosse uma pergunta, qualquer brasileiro vivendo neste tempo poderia se identificar. A busca pela beleza neste tempo de terra arrasada no qual nos situamos parece ser uma angústia coletiva. A despeito das potencialidades ou ambivalências de seus títulos, Rooney é um sucesso de vendas, teve um de seus livros, Pessoas Normais, adaptado para uma série na Starzplay e recebeu da crítica a alcunha de Salinger da geração millennial.

Quando se fala dos romances da autora, o enfoque predominante é o tratamento que ela escolhe dar para o amor e para as relações românticas. Há algo de muito fresco e contemporâneo na forma como Rooney monta e desmonta as ligações de seus personagens. Atenta à tendência, potencializada pelas redes sociais, de que as pessoas sejam empreendedoras de si, se afoguem na busca pelo marketing pessoal, por serem sua “melhor versão” (para usar o termo em voga), se vestirem de forma disciplinada, comerem de forma disciplinada, trabalharem de forma disciplinada, sentirem de forma disciplinada, a autora retrata as consequências desta centralidade exacerbada no “eu” – ou seja, uma vida sem quase nenhum amor.

Os personagens de seus dois romances já lançados vivem contendo gestos e palavras, evitando o componente de imprevisibilidade do risco amoroso, o que resulta em uma série de desencontros que fazem o leitor acompanhar, desconfortável, o vazio e a tristeza que sobram após tantos silêncios. É fácil se conectar com a fraqueza abordada nos livros.

No entanto, na contramão desse interesse predominante, considero que há um aspecto em alguma medida negligenciado na leitura de seus livros, mas que penso tocar tanto a mim, quanto muitas das mulheres que conheço: o tipo de subjetivação pela qual as personagens femininas das obras passam. As protagonistas mulheres de Rooney são, em sua maioria, jovens, bastante instruídas, sensíveis e com propensão artística, lidando com as dificuldades da transição entre adolescência e vida adulta. Em comum, todas elas possuem um componente de hesitação em se expressarem, certo retraimento, como se o fato de terem lido tanto, escrito tanto, as tornasse mais agudamente cientes de que, caso se expandam demais, podem ser punidas com reprovação, ou mesmo violência. As personagens femininas de Rooney parecem habitar uma espécie de limbo, um nó de verbo, entre a cobrança de serem comuns e não chamarem muita atenção para si e a percepção de que estão com a cabeça e as mãos fervilhando de coisas por comunicar.

Como é próprio desse tipo de projeto neoliberal no qual elas e nós estamos inseridos, as personagens Marianne e Frances sentem muita dificuldade em reconhecer que seus medos possuem origem sistêmica e tendem a culpar a si mesmas pela repressão da qual padecem. Acreditam que provavelmente não são inteligentes o suficiente, que o que produzem não é relevante o suficiente, que quando são tratadas com escárnio ou condescendência, é porque devem ter merecido. Se o sucesso e a repercussão artística são triunfos individuais, oriundos do esforço pessoal, é evidente que os desacertos que enfrentam também são responsabilidade inteiramente delas. As personagens de Rooney, embora muito talentosas, são também quietas, silenciosas e falam de si mesmas com pouca compaixão. Internalizaram de forma eficaz o tipo de voz que concedeu acesso a livros, filmes, obras de arte, apenas para atestar que colocar as mãos neste tipo de atividade não é para elas.

Em seu livro de memórias, a ensaísta Rebecca Solnit afirma que qualquer mulher jovem que queira ter uma voz no mundo precisará sobreviver repetidas vezes a formas variadas de aniquilação. As personagens criadas por Rooney atestam isto a cada vez que adoecem, que se isolam, que se deprimem, em função das palavras engasgadas. Nada desse processo é alardeado nos livros e nós apenas acompanhamos os altos e baixos das protagonistas com o mesmo grau de incompreensão do qual elas padecem, o que talvez torne a experiência de leitura mais aflitiva.

Como quase todas as agonias, a agonia das personagens é uma agonia de linguagem, de inarticulação em linguagem, uma vez que as possibilidades de elaboração, a despeito dos filmes demais, livros demais, músicas demais, estão barradas. Sinto, a cada vez que me aventuro por suas palavras, que Rooney consegue dar forma ao que eu mesma, muitas vezes, não consigo explicar. E, com isso, meus próprios estarrecimentos parecem ganhar companhia. 

Camille C. Branco

Antropóloga, doutoranda pela UFPA, desenvolve pesquisa sobre mobilização social na Amazônia, feminismos, corporalidades políticas e violência.