As mulheres não serão apagadas
Quando vemos o início de uma nova etapa de terror comprometer as esperanças de dias melhores no Afeganistão, o despencar do mundo de milhares de pessoas pode ressoar como uma bestialidade para nós. O medo compartilhado por aqui, ainda que muitas vezes opaco e naturalizado, volta a crescer diante da perplexidade da fragilidade de conquistas tão árduas e da facilidade com que os discursos de proteção dos direitos humanos são esquecidos por quem dizia protegê-los.
Ao assistir às imagens de mulheres afegãs sendo apagadas das paredes e as suas presenças, expulsas das ruas, das escolas e dos postos de trabalho, além das previsões de todo o horror que ameaça permear os seus dias, há quem arrisque a desfaçatez de reduzir esse tormento a um acaso cultural ou a uma antimodernidade religiosa.
Na realidade, afora os interesses bélicos e geopolíticos que contornam essa tragédia, o movimento que busca minar as liberdades e a existência física e simbólica das afegãs possui semelhanças com aquele que se camufla nas esquinas, nas ruas e nos cômodos mais próximos a nós.
Ainda que se evite a inadequada comparação entre a radicalidade da violência sofrida pelas mulheres afegãs e aquela que sentimos pessoalmente, é significativo que esses dias nos façam lembrar que não estamos totalmente a salvo em local algum, e que, em todas as partes, o bem mais atingido das mulheres não é patrimonial, mas existencial.
Os privilégios e as defesas proporcionadas por conjunturas pessoais ou as mesas às quais sentamos não afastam a sensação de que as vidas que vemos serem atacadas são semelhantes às nossas, e de que este mundo segue disposto a nos enviar a um lugar vazio, pequeno e tormentoso.
Vive-se o esforço contínuo de tentar construir uma rede de proteção suficientemente ampla para impedir que alguém tire aquilo que tem sido conquistado a tantas dores. O assombro de ver conquistas serem tomadas e de perceber se esvair a ilusão de que os direitos alcançados não possam regredir enfatiza a necessidade de que esse seja um tempo de reunir as forças e as vozes de todas as partes.
É preciso aproximar o que parece um evento distante da nossa realidade e torná-lo algo em que possamos nos envolver. Importa fazer algo além de lamentar o infortúnio do que parece tão longínquo, mas que, na verdade, pode ser muito próximo daquilo que está ao nosso lado.