Bemdito

Bruxas, putas e foras da lei #1

Quem encontramos nos primórdios da história das conquistas femininas?
POR Juliana Diniz
Ilustração de Charles Lessa

Quem encontramos nos primórdios da história das conquistas femininas?

Juliana Diniz
Julianacdcampos@gmail.com

Manhã de domingo, 7 de março de 2021, segundo ano da pandemia. A chamada em destaque no portal da Folha de S.Paulo anuncia um triunfo incontestável: “mulher vira o jogo e já ganha mais que o homem em 224 ocupações”. O especial preparado para o começo de março repete uma pauta já previsível: é o mês que testemunha o esforço dos veículos de comunicação e das instituições de celebrar as conquistas femininas consolidadas, apresentar histórias singulares de sucesso e mapear problemas estruturais bem conhecidos. Poucas horas depois da chamada triunfante, uma nova notícia parece contradizer o cenário otimista: o índice de desocupação é recorde e afeta especialmente as mulheres, sobretudo as que têm filhos pequenos. Segundo o IBGE, apenas 54,6% das mulheres com filhos até três anos estão empregadas. Afinal, o jogo foi ou não virado? O que essa ambiguidade nos diz?

Os clichês ambivalentes das comemorações do dia 8 de março dizem muito sobre como o imaginário social elabora os discursos sobre autonomia feminina. Se, por um lado, parece cada vez mais recomendável festejar a força das mulheres, por outro, é justamente na data de comemoração da mulher que os símbolos tradicionais de feminilidade são reafirmados em metáforas florais e invocações de cândida doçura. Que atire a primeira pedra a mulher que não amanheceu no dia de hoje com uma mensagem florada em algum grupo de Whatsapp. Que mulher é desejável? A forte dominadora de seu destino ou a cuidadora amável, a quem chamamos de nosso jardim? Em que medida as duas cabem no mesmo corpo? E por que tentar cumular esses dois projetos tem nos deixado tão confusas?

O problema está na persistência de uma forte idealização sobre a mulher a ser celebrada. Uma persistência que não pode ser explicada apenas pelo sucesso de homens apegados ao tradicionalismo em resistir ao avanço da pauta pela emancipação das mulheres. Há uma cristalização bastante visceral de certos arquétipos, que se enraízam, que se imiscuem na mentalidade das próprias mulheres como se nossas ancestrais nos fiassem maldições de subserviência enquanto nos trançam os cabelos. Podemos sintetizar esses arquétipos em três identidades fundamentais, num esforço de simplificar: uma mulher pode desempenhar o papel de mãe e cuidadora (a virgem), sempre disposta à abdicação e ao cuidado; de mulher lasciva devoradora (a prostituta e a adúltera), indiferente aos deveres matrimoniais e familiares; ou o de mulher que enfeitiça e ameaça (a bruxa), a desequilibrada responsável pela perdição da sociedade e dos homens.

Esses arquétipos são especialmente resistentes no imaginário e, nos mais diversos discursos sociais, se fazem presentes para categorizar e julgar comportamentos e experiências femininas. Para que possamos entender não só nossos avanços, mas nos proteger contra os sempre ameaçados retrocessos, talvez seja preciso entender como eles foram criados. Resgatar as nossas ancestrais distantes da história, as mulheres que contestaram certos domínios masculinos e, ao resistir a eles, acabaram por potencializar uma reação cultural muito forte de construção de uma feminilidade domesticável, em que a figura da mulher-mãe passa a ser protegida, e a figura da mulher forte e ameaçadora é alvo de severas punições e perseguições sociais. Porque no fundo a mistificação do feminino é a exaltação de uma faceta da feminilidade e a condenação das outras como abjetas e impuras.

Não é suficiente retrocedermos somente algumas décadas. As sufragistas que no século XIX parecem ter chutado a primeira porta rumo à emancipação de suas irmãs do futuro certamente são o exemplo mais palpável de uma articulação política eficiente, mas não é aí que a ameaça surge. Consideradas precursoras do feminismo moderno, elas foram responsáveis pelo lançamento de uma agenda pública voltada a mudanças estruturais, influenciaram o sistema político e viabilizaram a previsão de direitos políticos para as mulheres nos países do Ocidente democrático. Mas elas também têm suas avós e, neste texto, quero conversar sobre elas, as verdadeiras arrombadoras de portas, mulheres que resistiram em contextos absolutamente hostis a qualquer pauta emancipatória e que tornaram o sufragismo – e tudo que veio depois – possível.

Antes do florescimento dessa consciência feminina sufragista – muito burguesa, muito iluminista e muito urbana – podemos identificar um caminho tortuoso, pré-revolucionário. O que nos permite identificá-las nas rotas difusas de muitos séculos é o fato de terem ameaçado com suas formas de vida pilares fundamentais para a dominação masculina: o controle sobre o conhecimento, sobre a espiritualidade e sobre o poder político.

As verdadeiras ameaças ao domínio do masculino sempre foram as bruxas, as putas e as fora da lei.

A tarefa de traçar a história de como a cultura ocidental constrói e se relaciona com a bruxaria é árdua, mas Jeffrey B. Russell indica algumas correlações interessantes. O fenômeno da bruxaria já está presente desde a Antiguidade, e há uma associação duradoura entre o feminino e a prática da feitiçaria. A bruxa “representa uma força natural elementar detentora de enormes e inesperados poderes contra os quais uma pessoa normal é incapaz de se preparar ou defender, uma força não necessariamente maléfica, mas tão alheia e remota ao mundo dos homens que constitui uma ameaça à ordem social, ética e até física do cosmo.”

A figura da mulher ameaçadora da ordem, capaz de controlar as forças ocultas da natureza, mobilizou a perseguição a mulheres durante séculos – exatamente àquelas que, por escolha ou não, não podiam ser facilmente enquadráveis na expectativa projetada para seu gênero. Segundo Russell, “Midelfort observou que o século XVI mostrou uma tendência excepcionalmente misógina, possivelmente porque as mudanças demográficas produziram um número incomum de mulheres que viviam sozinhas. (…) Muitas solteiras e viúvas encontraram um lar com irmãos, filhos ou outros parentes, mas a proporção de mulheres solteiras e solitárias parece ter aumentado. Tais pessoas, isoladas, infelizes, empobrecidas e rabugentas, eram alvo fácil para as acusações de bruxaria”.

Se voltarmos às profundezas do período medieval europeu, descobriremos que existe, afinal, uma razão para que a cultura tenha associado o feminino à bruxaria, e ela tem a ver com domínio e poder.

A elaboração do perigo e da sensação social do risco representado pelas mulheres demandou muito latim – e muito recurso às narrativas bíblicas e ao simbolismo arraigado. Identificada como um ser de fraqueza moral e psíquica, é a mulher que perde o homem para a tentação e o pecado, que sucumbe diante do desejo e precipita o mundo ao caos. Aos seus ouvidos, o diabo sussurra com a voz mais mansa. Já vaticinava sobre a companhia do demo o padre Antônio Vieira às pobres freiras do convento de Odivelas, em 1654: “por sinal, senhoras, muitas o deixastes na vossa cela, e o achareis lá quando voltardes”.

Mary del Priore, que recupera uma parte da história da intimidade no Brasil colônia, menciona a preocupação declarada com as mulheres mais bonitas: “a mulher – a velha amiga da serpente e do Diabo – era considerada, nesses tempos, como um veículo de perdição da saúde e da alma dos homens. Aquela “bem aparecida”, sinônimo no século XVII para formosa, era pior!”. Herdeira de Eva, a fêmea padece do mal de parir entre dores e de ser alvo da desconfiança dos homens por ser devedora de um pecado fundamental, original. Uma condenação duradoura, segundo Priore, ao se referir ao intervalo que vai do século XII ao XVIII, “quer na filosofia, quer na moral ou na ética do período, a mulher era considerada um ninho de pecados. (…) Venenosa e traiçoeira, a mulher era acusada pelo outro sexo de ter introduzido sobre a terra o pecado, a infelicidade e a morte. Eva cometera o pecado original ao comer o fruto proibido. O homem procurava um responsável pelo sofrimento, o fracasso, o desaparecimento do paraíso terrestre, e encontrou a mulher”.

A construção cultural que produziu a ideia da intimidade entre a mulher e o demônio no cristianismo medieval pode ser explicada como uma tentativa de reservar poder, seja religioso, seja econômico. Poder espiritual porque as religiões pagãs da Antiguidade não raro cultuavam divindades femininas e reservavam a ritualística a sacerdotisas mulheres, que desempenhavam o papel de liderança espiritual, uma posição social de prestígio que precisou ser subvertida para dar lugar a uma instituição onde o controle masculino da prática religiosa era condição da unidade do poder da instituição igreja.

Há também esforços para demonstrar como a concentração do poder espiritual na igreja foi importante por razões econômicas, um tema que Silvia Federici explora em seu Mulheres e caça às bruxas: “as mulheres tiveram maior probabilidade de ser vitimizadas porque foram as mais ‘destituídas de poder’ por essas mudanças, em especial as mais velhas, que, muitas vezes, se rebelavam contra a pauperização e a exclusão social e que constituíam a maioria das acusadas. Em outras palavras, as mulheres foram acusadas de bruxaria porque a reestruturação da Europa no início do capitalismo destruiu seus meios de sobrevivência e a base de seu poder social, deixando-as sem nenhum recurso além da dependência da caridade”.

O que Federici sugere é que, entre as bruxas, estavam não apenas as detentoras de autoridade espiritual nas religiões pagãs, aquelas que de fato se dedicavam a algum tipo de ritualística religiosa, mas todas as mulheres que, por inconformação, se rebelaram contra a autoridade constituída em busca de condições mais dignas de vida.

Há, na bruxa do passado, uma contestadora fundamental da ordem.

Ao questionar a lei, a bruxa nos convida – ainda hoje – a pensar sobre o que a lei significa em termos de restrição de possibilidades de vida, quem tem o poder de defini-la e o que o sexo tem a ver com tudo isso. Um assunto que retomarei amanhã, na continuidade desta série sobre nossas avós subversivas.

Juliana Diniz é editora executiva do Bemdito, professora da UFC e doutora em Direito pela USP. Está no Instagram e Twitter.

Serviço

História da bruxaria
Jeffrey B. Russell
280 pgs.
Editora Aleph (2018)

Histórias íntimas
Mary del Priore
254 pgs.
Editora Planeta (2014)

Mulheres e caça às Bruxas
Silvia Federici
158 pgs.
Editora Boitempo (2019)

Juliana Diniz

Editora executiva do Bemdito. É professora do curso de Direito da UFC e Doutora em Direito pela USP, além de escritora. Publicou, entre outras obras, o romance Memória dos Ossos.