Coisas que andam a se desfazer
Quando a poeira do tempo se acumula nas coisas, em nós e nos cantos
Alice Dote
alicedote@gmail.com
Varri toda a casa e passei aspirador nos móveis e cantos do quarto. Pelos, muitos pelos amarelados e pretos, confundem-se com a poeira, cobrindo as superfícies dos móveis e se infiltrando em cada reentrância deles. Os objetos dispostos ou esquecidos na cômoda, nas prateleiras ou mesmo no chão — onde quer que não estejam protegidos no interior de uma gaveta — logo esmaecem sob uma camada espessa de pó e pelo.
Conviver com essas partículas invencíveis me levou a apreciar móveis e artigos de decoração a partir de critérios antes desconsiderados: decido se deles gosto ao avaliar a praticidade de sua limpeza. Profusão de detalhes, recortes, arestas e curvas: “a função disso é acumular poeira”, ouço-me dizer ao desistir da difícil beleza dessas formas. A cabeceira da cama e os puxadores dos móveis do quarto, por exemplo, parecem ter sido projetados por alguém que desconhece a tarefa cotidiana de manter minimamente limpa uma casa: cada uma das frestas entre as ripas da cabeceira encontra-se, invariavelmente, preenchida com sujeira cinza. Só aspirador para sugá-la das dezoito linhas paralelas onde recostamos os travesseiros. No caso dos puxadores, o aspirador ajuda, mas é preciso uma chave de fenda para alcançar os cantinhos em que pó e pelo se acomodam. É com a ferramenta que vou cutucando e empurrando a massa cinza. Essa operação minuciosa, no entanto, só é levada a cabo naqueles sábados de faxina pesada, ao som de samba e pagode — que, aliás, têm ocorrido com cada vez menos frequência.
Ainda assim, não importa quão dedicado seja o combate a essas micropartículas, absolutamente nada as doma e sobre elas triunfa: nem gavetas, nem aspiradores. Nada as engana. Desconfio que mesmo nós, se nos deixarmos na cama por toda uma tarde, levantaremos acinzentados.
Toda a casa varrida, vesti-me para uma habitual rota de resoluções: comprar remédios, despachar encomendas, retirar compras. Embora já tenha me resignado à rapidez com que a mistura amarela e preta de pelos toma a casa logo após guardada a vassoura, agora, não eram pelos a cobrir o chão. Eram partículas escuras que se estendiam do quarto à sala, da sala à cozinha, concentrando-se em algumas parcelas desses metros quadrados. Em tamanhos variados, marcavam o piso alaranjado com pintas pretas. Denunciariam alguma infração das cachorras? Teriam entrado pela porta, nas suas patas, ou pela janela bastante suscetível ao que se passa no chão distante apenas dois andares? Anunciariam que a obra do prédio vizinho inicia uma nova fase?
Sem resolver o mistério, saí. Duas horas da tarde em Fortaleza. Junto ao vestido fresco e solto, um par de coturnos de cano médio. A superfície preta e envernizada, já desgastada pelo tempo, reluz agora ainda mais tímida por baixo da camada de pó fino que nela grudou. Ao pegar os sapatos em uma das prateleiras do armário, apenas os sacudi levemente antes de os calçar, quando mereciam que eu, ao menos, os tivesse limpado com um pano. Quando sob o sol, o claro reflexo da poeira, contrastando com o preto das botas, parece nele movimentar-se.
As mesmas partículas escuras no piso branco e imaculado da farmácia.
E no piso não tão branco e não tão imaculado dos Correios.
As coisas parecem também sentir os suspeitos movimentos dos tempos. Vão revelando, à sua maneira, uma tal inconformidade, uma tal perturbação. Às vezes, admitem o abandono, renunciam a continuar. Será que nossos armários advinham os tempos que vivemos pela falta do toque dos dedos no seu acervo, relegado ao esquecimento nos infindáveis dias descalços? Ou pela ânsia dos dedos que o percorrem à procura do esquecido?
O que veste nossos corpos é um marcador da passagem do tempo: nas ruas, mas também no íntimo do guarda-roupa. Não me refiro somente ao tempo que essas peças guardam na matéria impregnada de memória. Essa matéria, porosa e fluida aos difusos e invisíveis fluxos do ambiente, que desconhecemos, também se impregna continuamente de aconteceres que independem de nós. Mais uma vez, retomo o antropólogo Tim Ingold para constatar que, se a casa real nunca fica pronta, as coisas que a habitam também não.
As coisas esquecidas ou a custo guardadas, mês após mês não só “ficando em casa”, mas dentro dos armários e gavetas, permanecem a agir e serem agidas. Não assumem o estado de permanente disposição — ou de permanência à disposição — que desejamos. Como a poeira e os pelos que invadem a casa: nós não os domamos.
Os sapatos têm experimentado o tempo à sua maneira. A falta de contato com a pele e com o chão, com o ar fresco e com a luz, abateu-os, como abate os corpos. A matéria em decomposição anuncia que as coisas não nos esperam. Ingenuidade tentar mantê-las intactas: parece-me que o que as desgasta é, na verdade, a falta de uso. É que, para falar como Tim Ingold, nossas experiências mais fundamentais com as coisas são — ou assim deveria ser — verbais, não nominais. Elas consistem em gestos de reunião, de contato e troca entre superfícies, com as matérias que têm como permanente apenas o constante acontecer.
Percebo, com embaraço e incômodo, que deixo um rastro de partículas pretas por onde passo. São de mim, ou, antes, de meus pés calçados, que elas se desprendem e se estendem como visíveis vestígios do ir e vir entre os cômodos da casa, do costumeiro percurso entre os corredores da farmácia (da entrada até o balcão dos medicamentos pelo corredor dos produtos capilares, voltando para o caixa pelo corredor dos dermocosméticos), e do reto seguir na fila dos Correios.
Não é o primeiro par de sapatos que anda a se desfazer por aqui. Cada vez que arrisco usar um par há muito guardado, aguarda-me uma surpresa: volto para casa (ou, no caso de compromissos em casa, para o quarto) com o seu solado prestes a o abandonar. As botas são as que mais sofrem. Almir, o sapateiro da Tomás Acioli, salvou a cavidade interior de uma delas, arrancando o material sintético que a revestia e que, ao desmanchar-se, grudava nos pés e manchava as unhas. Ao pegá-la após o conserto, deixei um par de sapatos cujos componentes separaram-se por completo. Mas, para o solado dos coturnos pretos, ele disse, não há jeito. Se sei que não deixarei esses coturnos a desintegrarem-se por esquecimento, não sei o que farei para evitar deixar rastros de poliuretano por onde passo.
Alice Dote é mestre em sociologia e artista visual. Está no Instagram.