Bemdito

Dados num mundo pós-verdade #4: Educação, responsabilidade e financiamento

No ruído das distrações diárias, estamos olhando para frente ou começamos a dar passos para o passado?
POR Alisson Sellaro
Foto: UNICEF

Neste quarto artigo da série Dados num mundo pós-verdade, falaremos da segunda parte das grandes perguntas sobre educação: quem é responsável pelo provimento dos serviços educacionais e como pagaremos por ela.

As outras duas questões fundamentais – qual é o alcance esperado das atividades educacionais e qual é a qualidade que queremos para a nossa educação – foram analisadas no terceiro artigo.

Caso você ainda não tenha lido os artigos que iniciam esta série, te convido a começar por lá. Caso já os tenha lido, vamos continuar a nossa conversa.

Na Constituição Federal de 1988, a educação é definida como uma série de métodos e práticas que tem por objetivo “promover o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. O texto constitucional fala ainda que a educação é “direito de todos e dever do Estado e da família”.

No Brasil, seguimos a Classificação Internacional Normalizada da Educação (CINE), definida pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO).

A classificação serve para estruturar sistemas educacionais e estabelecer uma referência internacional de coleta e análise de dados relativos ao tema. Existem nove níveis CINE, do CINE 0 ao CINE 8.

Nosso ensino obrigatório inicia na pré-escola (CINE 0), aos quatro anos, e se estende até o final do Ensino Médio (CINE 3). A proposta do modelo brasileiro é de prover ao menos 14 anos de formação, com a possibilidade de acessar o ensino não obrigatório, técnico ou superior, posteriormente. Todos os brasileiros têm o direito de acesso à educação pública em todos os níveis.

Para (tentar) garantir esse direito, os três entes federativos (União, Estados e Municípios) se dividem no provimento da educação. É incorreto afirmar que apenas um desses entes seja “o” responsável. Em vez disso, faz mais sentido, conforme o texto constitucional, falar em “responsável principal”.

Neste sentido, do primeiro contato com as creches e a pré-escola, no Ensino Infantil, até o 5º ano do Ensino Fundamental, os municípios são os principais responsáveis. Nos anos finais do Ensino Fundamental (do 6º ao 9º ano), Estados e Municípios têm responsabilidades similares. O Ensino Médio fica a cargo dos Estados, enquanto o ensino técnico de nível Médio e os diversos níveis superiores são majoritariamente conduzidos pela União (governo federal).

A tabela abaixo compila dados da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) e da lei que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional para resumir a estrutura de ensino no Brasil, suas equivalências com a CINE e o principal responsável pelo ensino entre os entes federativos.

Como a sociedade paga pelo ensino?

No artigo anterior, destacamos que a educação no Brasil é guiada por nove princípios constitucionais. Não por acaso, a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola é o primeiro deles, seguido de perto pela preocupação com a garantia de padrão de qualidade do aprendizado.

Portanto, a equidade e a qualidade devem ser fatores-chave na elaboração e execução das políticas públicas de educação. E, como tais, precisam ser considerados na hora de alocar os recursos para financiar este direito.

Existe uma confusão sobre o ensino público. O fato de não haver pagamento para que crianças e adolescentes frequentem a escola pública não significa que ninguém pague o custo. Pode parecer óbvio, mas não é. Há um custo, pago por toda a sociedade, através de tributos e impostos.

A Constituição prevê que Estados e Municípios destinem pelo menos 25% de suas receitas tributárias e de repasses da União para financiar a educação. Repasse, aqui, significa a transferência de dinheiro especificamente destinado à educação entre uma esfera federativa e outra (por exemplo: entre a União e os Estados ou entre os Estados e Municípios).

Na prática, segundo o documento Panorama da Educação 2020, a OCDE lista que no Brasil as participações no financiamento da educação são feitas da seguinte forma:

– Governo Federal: 25%
– Governos Estaduais: 38%
– Governos Municipais: 37%

Analisando com mais cuidado esses números, observamos qual a contribuição de cada nível federativo no financiamento.

Mas é importante lembrar que os segmentos da educação sob principal responsabilidade desses entes são diferentes. Por exemplo: 75% de todo o financiamento do Ensino Superior vêm do governo federal.

O desafio da igualdade

Olhando para o gasto por aluno nos Estados, é fácil perceber que existem desigualdades regionais em vários níveis. Entre regiões, por exemplo, enquanto o município com maior gasto por aluno no Amazonas investia em 2015 pouco mais de R$ 4 mil por aluno todo ano, no Rio Grande do Sul essa cifra era de quase R$ 20 mil, uma diferença da ordem de cinco vezes.

Essa disparidade também se observa em um mesmo Estado. Em Minas Gerais, enquanto o município com maior investimento por aluno destinava cerca de R$ 18 mil anuais, o município com o menor investimento por aluno investia pouco mais de R$ 3 mil por ano, uma diferença de seis vezes.

Em 2007, durante o Governo Lula, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) foi criado, cobrindo todos os níveis de ensino obrigatório, para substituir, expandir e aprimorar um fundo anterior que cobria apenas o Ensino Fundamental.

O Fundeb se tornou um instrumento importante na diminuição das desigualdades no financiamento da educação, com alguns estudos apontando que as diferenças no gasto por aluno entre municípios, que hoje chega a 564%, poderiam chegar a mais de 10.000% sem o fundo.

Tamanho foi o impacto positivo que em 2020 foi aprovada a Emenda Constitucional 108, que transforma o Fundeb em uma característica permanente, incorporada à Constituição, do financiamento da educação no Brasil.

O desafio de transformar investimento em qualidade

Durante o governo Dilma, em 2014, foi aprovado o Plano Nacional de Educação (PNE), que determina diretrizes, metas e estratégias para a política educacional do decênio iniciado em 2014. O PNE prevê uma meta de investimento de 10% do PIB em educação até 2024.

Até 2017, os gastos com educação, em todos os níveis, chegavam a 5,1% do PIB. O Brasil investe mais – na comparação com os investimentos de países da OCDE que destinam cerca de 4% do PIB -, mas tem um desempenho pior em qualidade, segundo o teste de PISA. O gráfico abaixo mostra os gastos do governo com instituições educacionais (do ensino fundamental ao ensino superior), como porcentagem do PIB em 2017.

Quando analisamos os dados de gastos por nível de ensino, percebemos que o Brasil não tem grandes disparidades em relação a outros países da América Latina, sendo que a maior parte do gasto público se concentra no Ensino Fundamental (CINE 1 e 2).

Observando a variação do investimento em educação de 2000 a 2015, segundo os Indicadores Financeiros Educacionais, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) – uma autarquia federal vinculada ao Ministério da Educação -, houve um leve declínio dos investimentos durante o governo FHC, seguido de um aumento contínuo durante os governos Lula e Dilma.

O 6° Relatório Bimestral: Execução Orçamentária do Ministério da Educação, elaborado pelo Todos Pela Educação, com base em dados disponibilizados pelo Ministério da Economia, dá uma prévia do que podemos esperar nos próximos anos.

O relatório evidencia que o Ministério da Educação encerrou o exercício de 2020 com a menor dotação desde 2011, com R$ 143,3 bilhões. Além disso, apenas 81% das despesas obrigatórias previstas para a Educação Básica foram executadas, frente a 86% em 2019.

Em outras palavras: destinamos menos recurso à educação e, mesmo assim, não tivemos capacidade de efetivamente gastar estes recursos reduzidos na sua totalidade.

Educação no Brasil: passado, presente e futuro

Os avanços na educação realizados desde a redemocratização, com base no estabelecido pela Constituição Federal, foram significativos. Enquanto continuamos ampliando o acesso ao sistema escolar e reduzindo o analfabetismo, conseguimos aperfeiçoar mecanismos que garantem uma melhor distribuição dos recursos.

É evidente que ainda há um abismo de desigualdades regionais que seguram o desenvolvimento pleno do Brasil do ponto de vista educacional. É importante manter um olhar objetivo sobre os dados para nos ajudar a tomar decisões do caminho que queremos trilhar socialmente.

Dar igualdade de acesso e qualidade é um dos maiores desafios no contexto educacional. Existem muitos estudos que apontam uma alta correlação entre investimento por aluno e  qualidade do ensino. É preciso fazer mais para distribuir melhor os recursos e fazer com que seu uso gere um melhor aprendizado.

A incorporação do Fundeb como parte da Constituição, através da Emenda Constitucional 108, foi uma conquista importante, pois, pelo menos em tese, nos deixa menos sujeitos às variações de humor do Poder Executivo da ocasião.

E é preciso nos protegermos das falsas polêmicas. Os dados coletados de 2020 já apontam elementos preocupantes em relação à execução orçamentária. Se esses resultados se mantiverem em 2021, corremos o risco de criar uma tendência negativa de retrocesso.

Alisson Sellaro

É bacharel em Ciência da Computação pela UFC, mestrando em Ciência de Dados em Harvard e trabalha com tecnologia para o mercado financeiro. Assina textos sobre tecnologia, dados e seus impactos sociais.