De onde jorram os livros
“Nâo importa quem você seja, você só tem a sua vida. Mas, nos livros, você tem zilhões de vida, zilhões de coisas. Pra mim é só um jeito de ser imensamente rica”.
Fran Leibowitz, no documentário “Pretend it’s a city”.
Foi com as mulheres que aprendi a ler. Mais do que isso: foi com elas que aprendi a gostar de ler.
À noite, depois de um dia exaustivo, minha avó deitava-se entre as prateleiras lotadas de formas de bolo e o freezer barulhento, abria seu livro e escapava para algum lugar mais aconchegante. Ao vê-la embalar o próprio sono, minha curiosidade por decifrar as letras só crescia.
Sentada no pátio do prédio onde morávamos, eu fazia de conta que escrevia. Minha mãe, reconhecendo meu desejo, conseguiu que a escola me recebesse um ano antes do previsto. Respeitar o desejo de uma criança não se confunde com fazer as vontades. Há uma diferença sutil, mas abismal.
Com a professora começamos passando os dedos em letras recortadas em lixas. Antes de escrever, era preciso sentir as letras na ponta dos dedos. E, depois que aprendemos a juntar as letras, foi preciso aprender a separá-las. Batíamos palma enquanto dizíamos as palavras em voz alta, para sentir a escansão. Não se aprende nada sem sentir no corpo.
Ganhei, também de uma mulher, o primeiro livro de letras cursivas. Finalmente chegou o dia dessa passagem tão importante: quando conquistamos a possibilidade de ler um livro para nós mesmos. Uma autorização para estar consigo, para embalar-se e dar-se colo. O livro que ganhei era sobre a vida das minhocas, sobre como elas viviam no jardim criando túneis subterrâneos e arejando a terra. Coincidência curiosa, pois, ler é colocar minhocas na cabeça, cavar túneis de ar nos subterrâneos, por vezes denso e sufocado, da vida sentimental.
Concordo com a Fran Leibowitz. Sempre considerei que uma vida é pouco para tudo que há para se viver. E nessa ânsia de viver muitas vidas fui mergulhando nos livros e descobrindo que alguns deles são piscina e outros são mar aberto. Não há fogueira totalitária que os torne cinzas.
Os supridores, de José Falero, é inundação. A água vai chegando de forma contínua e nos invade a casa, sem concessões. Em pouco tempo nos damos conta de que vamos perder algo.
Para quem conhece, racionalmente, a realidade de quem nasce pobre e negro no Brasil, o livro tem efeito de corte. Produz um antes e um depois. Justamente porque faz o leitor sentir no corpo um pequeno vislumbre do que é a experiência da maioria dos brasileiros: viver sem direitos.
O que se perde na inundação é a ilusão branca, ingênua e arrogante de saber. O efeito é uma espécie de anti-empatia: se você é branco e de classe média nunca vai saber como é ser o Pedro ou o Marques. E responsabilizar-se pelo impossível de estar no lugar do outro é condição fundamental para agir no mundo de forma menos alienada. Entretanto, é importante dizer que o livro não tem essa preocupação. Não foi escrito para brancos ricos, mas apesar deles.
Detalhe precioso: Falero sempre conta que foi pelas mãos da sua irmã que ele leu seu primeiro livro, aos 20 anos. De novo as mulheres, e seu amor pelas palavras, transformando vidas.
Escrevo inspirada pelo convite da Festa Literária do Ceará: ler para resistir. Os negros e os pobres entraram na universidade e isso também produziu um antes e depois na história do Brasil. Há 20 anos uma pessoa na condição de Falero seria o garçom da festa literária. Hoje ele é protagonista. Pode haver retrocesso, mas não haverá retorno.
Livro é água. Sempre acha passagem.