Bemdito

Delírio imunista

A ideia de “imunidade” associada à política, à biologia, ao poder e à vida
POR Ricardo Evandro
Foto: Mateus Bonomi

Nos seus livros e artigos, o filósofo italiano Roberto Esposito ensina que as palavras latinas immunitas e communitas são o inverso uma da outra. Mas ainda que antônimos, os termos derivam de um étimo só: munus.

Segundo Esposito, munus significa ofício ou obrigação para com os outros. Assim, enquanto aquilo que é com-munus se trata de uma obrigação em conjunto, trabalho mútuo, o im-munus é a exclusão dessa mutualidade.

O imune é aquele que não participa do comum, não está submetido a uma lei geral, pois está protegido de qualquer obrigação para com o outro. É neste sentido mesmo que se fala, por exemplo, em imunidade parlamentar, imunidade diplomática.

Porém, os exemplos imunitórios mais fáceis de se entender estão no âmbito biológico, mais do que no político. Afinal, não é isso mesmo que uma vacina faz? Ela nos imuniza, torna-nos imunes a um vírus. Saímos da comunidade de contaminados, sintomáticos ou fatais, para vivenciar a imunidade.

Neste ensaio, contudo, quero trazer a dimensão biopolítica do conceito de imunidade. Pois ela é capaz de ampliar nosso horizonte de compreensão desse termo e de fazer entender melhor o que vivemos no Brasil, hoje.

E como se pode entender a imunidade, associando política e biologia, poder e vida?

Segundo a filosofia de Esposito, neste sentido biopolítico, a imunidade se dá pelos dispositivos de proteção, de isenção de uma comunidade. Tais dispositivos buscam imunizá-la dos perigos contra as vidas comunitárias – como as ameaças de terrorismo, a criminalidade, etc. Tais mecanismos protetores, imunizantes, como o Direito, os militares, etc., servem para proteger a vida contra as ameaças políticas externas e internas.

Todavia, um fenômeno biopolítico pode ocorrer em meio ao objetivo imunizante de se proteger a vida a todo custo, mesmo a custo da própria comunidade.

De modo análogo às doenças autoimunes, os dispositivos de segurança de uma comunidade política, justamente em nome da proteção da vida, facilmente atacam o próprio corpo político, o que revela, de fundo, os dois sentidos de biopolítica: um que protege e constrói, e outro que ataca a si mesmo, destrói a vida, produz morte.

Seguindo o tema central de Bíos (2004) e de Termos da política (2008), no seu artigo O que realmente significa a palavra imunidade? (2020), Esposito afirma que “[n]aturalmente, a pandemia leva essa necessidade imunitária ao extremo, tornando-a o epicentro real e simbólico de nossa experiência”.

Diferentemente do que Giorgio Agamben tem publicado na Quodlibet, causando com isto muita polêmica no debate público, Esposito fala sobre a necessidade de um equilíbrio  virtuoso entre immunitas e communitas. Em uma entrevista recente, ele diz que “[a]ssim como nenhum corpo individual, nenhum corpo político poderia viver sem um sistema imunitário.”

Isso é claro, não há como se lidar com a atual pandemia do Covid-19 sem medidas de imunização por distanciamento ou por indução (vacina). Os preceitos de biossegurança da Organização Mundial da Saúde (OMS) são o que há de mais racional para se lidar com a atual crise. Isso é muito difícil de se contestar.

Por outro lado, a situação brasileira é muito singular. Pelo léxico de Esposito, aqui, no Brasil, as medidas de restrição, como distanciamento, testagem, compra de respiradores e de vacinas foram negligenciadas pelo governo federal brasileiro.

Numa jogada ideológica aparentemente complexa, em nome de uma suposta ideologia “libertária”, o mesmo presidente que se diz contrário às medidas de imunização é também o mesmo que sempre falou em golpe militar e que sempre elogiou torturadores da mais longa ditadura civil-militar brasileira. Seus filhos, congressistas, são defensores de atos institucionais golpistas – sendo que um deles é até mesmo suspeito de investir em equipamento de espionagem política de última geração.

Jair Bolsonaro e seu governo se apropriaram das pautas libertárias em nome de seu liberalismo autoritário – talvez aprendido com as experiências chilenas –, exercido contra jornalistas, professores, juristas, universidades, povos tradicionais, etc. E, com isto, Bolsonaro se vende como aquele que, nos termos de Esposito, seria contrário à imunização biopolítica, pois quer parecer ser contrário aos perigos do paradigma imunitório e dos riscos de autoimunidade (estado de exceção).

Mas a nossa singularidade brasileira parece superar os diagnósticos da filosofia italiana contemporânea. Bolsonaro tem seu plano de imunização bem definido. Aliás, de autoimunização biopolítica bem consciente de si: em vez de imunidade por distanciamento ou por indução, via quarentena e vacinas, ele defende a imunidade de rebanho.

Bolsonaro e seu grupo (tanato)político apoiado por pastores evangélicos e militares, fazendeiros e pessoas suspeitas de envolvimento com a máfiamilitarista – milicianos –, faz tudo o que pode para deixar morrer a comunidade brasileira, para salvaguardar um termo aparentemente vago: a economia, igualando-a à vida – pois, como ele mesmo diz, “economia é vida”.

A sua (bio)política imunitária, portanto, definitivamente, é autoimune. É política de morte, mas por uma negligência dos mecanismos de proteção. É uma política de exceção que se faz por um extremo “deixar morrer”.

Com isto, aqui está a nossa singularidade: Bolsonaro tem a estratégia biopolítica da desproteção total do corpo político brasileiro para proteger a vida igualada à economia; a ele, só interessa a “vida econômica”, única que importa ao funcionamento do colono-capitalismo brasileiro.

Em outras palavras, é o exercício de darwinismo social, deixando à morte os mais fracos, mesmo que sejam seus apoiadores, para imunizar o consumo, o comércio, a indústria, o trabalho precarizado. E tudo isto é feito sem qualquer escrúpulo de se repetir técnicas análogas ao do médico nazista Josef Mengele – que morreu foragido no Brasil, vale lembrar tal coincidência macabra –, mas fazendo, agora, de uma cidade inteira, bem no coração da Amazônia brasileira, a cobaia de seus experimentos pseudocientíficos com a cloroquina e com a imunidade de rebanho.

Para encerrar, umas palavras a mais sobre a nossa atual situação no Brasil: diferentemente do que a extrema-direita pensa, ou mesmo os autocompreendidos como liberais, de centro, os “democratas sensatos”, não temos perigo algum do fantasma do comunismo. Estamos muito longe de sequer sonhar com um “delírio comunista”. Em verdade, vivemos um delírio neoliberal, onde e quando não se posicionar nestes tempos de neofascismo – ou de cristofascismo, como diz Fábio Py – é estar em verdadeira autoexclusão da nossa comunidade política; é estar, portanto, em um delírio imunista.

Ricardo Evandro

Professor de Filosofia do Direito na UFPA, é doutor em Direitos Humanos e coordena o Grupo de Estudos sobre as Normalizações Violentas das Vidas na Amazônia. Atualmente pesquisa sobre teologia política, história do direito e anarquismo.