Dois sodomitas em Salvador
O vigário partiu de Santo Amaro de Ipitanga assim que leu na carta do arcebispo o mandado de prisão expedido contra o comerciante Luiz Delgado e o ator Doroteu Antunes. Acompanhado do sargento-mor, dois escravizados e dois ricos proprietários do lugar, percorreu, de 19 horas às 6 horas do dia seguinte, as oito léguas que separavam a matriz do sítio Jucumirim — alugado por 20 mil réis anuais aos jesuítas. Após um rápido cerco à singela casa, construída havia pouco tempo, mandou algemar os acusados e fez que andassem, amarrados, descalços e famintos até Salvador, onde seriam trancafiados daquele mês de fevereiro até julho e só então enviados numa embarcação insalubre a Lisboa para serem finalmente julgados pelo tenebrosíssimo Tribunal do Santo Ofício. Se se perguntasse pelas ruas de que poderia estar sendo incriminado o vendedor de tabaco, a Bahia inteira diria em uníssono: sodomia, claro. Os rumores circulavam pela cidade desde pelo menos 1675, ou seja, 14 anos antes, quando Maurícia Róis viu Delgado e o soldado José Nunes emergirem suadinhos das sombras projetadas pelos muros do Convento de São Bento. Só havia uma explicação para o suor escorrendo da testa.
Quem tivesse acesso à folha corrida do criminoso não poderia dizer que Maurícia simplesmente inventou uma maledicência. Delgado, ainda jovem e violeiro, já havia em 1666 sido processado, encarcerado, torturado e condenado a três anos de degredo pela Inquisição de Évora por ter praticado atividades homossexuais; em 1669, fanchono contumaz, pederasta reincidente, somítico incurável, é preso em Lisboa pelo mesmo motivo; nos primeiros anos de 1670 chega ao Brasil, talvez com um amante, primeiro no Maranhão, estabelecendo-se a seguir em Salvador. Aqui virou tão bem-sucedido tabaqueiro quanto afamado por suas práticas contra naturam. Teve vários amores. Ao primeiro, aquele Nunes soldado, deu memórias de ouro e até lhe pagava o aluguel; o segundo, Manuel de Souza, ele instalou como criado na casa que dividia com a própria mulher, Florença Dias Pereira; arrebatado pelo terceiro, José Gonçalves, fugiu ao Rio de Janeiro antes que a relação desaguasse num renovado aprisionamento. Mas Gonçalves, que se vestia cheio de coras e fitas, logo diz às autoridades ter se arrependido dos mais de 80 atos de molice ad invicem (masturbação recíproca) e quatro de sodomia perfeita (com ejaculação no ânus). Uma vez que se estendia o perdão aos autodenunciantes e penitentes, franquearam ao rapaz seu retorno a Portugal, deixando Delgado sozinho e destroçado de paixão. Por pouco tempo.
Indo a uma comédia teatral para espairecer, o estanqueiro viu Doroteu num papel feminino e foi amor à primeira vista. O resto desenrolou-se rapidamente. A princípio o artista sumiu; por três meses em 1686, ninguém deu por seu paradeiro. Até que o viram, através da janela, andar pra lá e pra cá, em mangas de camisa e ceroulas dentro da casa do mais velho. O meirinho qualificou o comportamento como amoral, acintoso. Logo a história de que o rapaz passara as últimas semanas acoitado não apenas na residência mas no quarto do reinol esquentava os ouvidos do patriarca Antunes, que foi bater à porta do ouvidor a pedir que resgatassem seu filho das garras do sodomita. Como a fofoca é uma das mais bem empregadas ferramentas humanas, o casal descobriu o perigo com que teria de se defrontar antes que se acercasse demais. Então fizeram as malas às pressas e, na calada da noite, auxiliados por Luiz Nunes, um criado paulista, se abrigaram no Convento do Carmo, beneficiando-se da tradição que assegurava guarida aos homiziados. Ali conheceram o soldado português Manuel Toledo da Silva, que, também escapando da polícia, arquitetou com eles a ida para o Espírito Santo. Calcula-se que a viagem durou uma semana pelas matas, sobre o lombo de alguma cavalgadura locada. Em Vitória esconderam-se todos no Convento de Nossa Senhora da Penha, tentando gozar das prerrogativas oficiais; porém, mesmo o costume da proteção acabou desconsiderado, quando os franciscanos do mosteiro notaram que duas daquelas figuras, chamando-se de “meu amor” e “meu bem”, evadiam-se para não ser enquadrados pelo pecado nefando. Expulsão sumária.
A solução de Delgado, aliás a pior possível, foi regressar à Bahia, de onde já havia saído incógnito. Não deve ter sido dos mais agradáveis o jantar de boas-vindas quando, na primeira noite após o desembarque no porto de Salvador, em setembro de 1687, Delgado, Doroteu, Florença e Manuel tiveram talvez de dividir a mesma mesa. Isso é apenas conjectura pelo bem da narrativa; temos conhecimento somente do aluguel que Delgado quitava para que Doroteu morasse ao redor da Fonte dos Sapateiros. Aparentemente, a região era propícia aos encontros fortuitos. Tanto que o moço passeava pelos arredores e, sabe como é, conversa lá com um, papeia cá com outro. Fosse Delgado informado, era medonha a confusão. “Com isto me pagais do amor que vos tenho e o muito que convosco gasto, dando-vos dinheiro, vestidos, casa em que morais e tudo mais que vos é necessário?”, gritava num de seus ataques de ciúmes. Aquela vida não poderia durar, quer pelas brigas, quer pela frequência que se viam à luz do sol. Embora tivessem cogitado seguir a Pernambuco, rumaram na verdade para Inhambupe, 30 léguas no norte do sertão; depois se aproximaram, pousando em Santo Amaro da Ipitanga, no sítio em que foram capturados. Não se pode dizer que o local fosse propriamente secreto. Delgado, enquanto travava contatos comerciais para sobreviver, saía dos pontos públicos dizendo mais ou menos assim: “Vou chegando que o menino ficou em casa só”.
O colóquio amoroso e por consequência a sorte dos enamorados se transformariam definitivamente com a posse do arcebispo d. Manuel da Ressurreição em maio de 1688. Este logo escreve a Lisboa: “comecei a ouvir as vozes de um grande escândalo contra um homem chamado Luiz Delgado, dizendo que era devasso no pecado nefando. Fui apurando o fundamento e achei que não era aéreo e que a fama era antiga”. Naquele ano, mais de 30 pessoas deduraram Delgado. A prisão pôs em evidência a união sui generis que havia se estabelecido entre ambos; o de mais idade se preocupava em dar água ao jovem, levava seus sapatos, ajudava a atravessar os vaus do caminho. Quebra absoluta de uma hierarquia que, naquela época, nascimento e posição social impunham necessariamente. Ao subvertê-la, arriscava-se a jogar a sociedade no abismo total. A imoralidade de uma ligação divergente não era o único, e talvez nem fosse o principal, fator que assustava as pessoas, segundo Luiz Mott, autor de Bahia: Inquisição & Sociedade; a desestrutura da ordem tinha um peso visível nos depoimentos das testemunhas. Beijos, abraços e outras carícias entre quatro paredes até poderiam ser tolerados, mas andar lado a lado na calçada com esse calçãozinho colorido jamais. O que se temia era “a destruição da indissolubilidade compulsória do matrimônio; a dissociação do livre prazer sexual, liberto da abominável cadeia imposta pelo Levítico e Concílio de Trento, alforriado da procriação obrigatória; o rompimento das barreiras de idade, raça e condição socioeconômica nas interações erótico-sentimentais. A liberdade do amor romântico!”, encerra Mott, a quem devo o conhecimento dessa história.
Daí seguiu-se a remissão à Metrópole numa viagem penosa — que, para ser custeada, confiscaram do ex-violeiro e leiloaram dois escravizados, utensílios domésticos, um púcaro e até as joias da mulher. Na caravela, como não fosse suficiente puxar as barbas dele, arrastá-lo pelo chão e molhar suas roupas, a tripulação o manteve agrilhoado por 15 dias na arca da bomba, um espaço cheio de água salgada, a fim de puni-lo por ter reagido. Já nos cárceres lusos, interrogou-se Doroteu logo e longamente. As respostas tratavam de eximi-lo da culpa e aumentar seu caráter ingênuo: foi morar com Delgado porque ele lhe prometera dinheiro e uma futura vaga no seminário; praticou sodomia umas oito ou nove vezes só, mas recebia as sementes do amante apenas na mão e nunca no vaso traseiro; o vendedor de fumo bem que pediu algumas vezes para que ele fosse ativo, porém não aceitou; acalentava mesmo o desejo de encerrar aquele estilo de vida desde que ouvira o sermão de um padre. Em janeiro de 1690 ostracizaram-no por três anos no Algarve. Apesar de não parecer, a sentença, escrita sem recurso a violência corporal, foi positiva para o moço, praticamente inocentado por ter atuado apenas como passivo. É que muitos doutores eram da opinião “que os pacientes no pecado nefando sejam menos rigorosamente punidos ainda havendo atos consumados”.
Com Delgado a peleja foi muito mais renhida. De início, deteriorou-se por vários anos nas celas imundas do Tribunal do Rocio até que cuidassem de julgá-lo. Isto é, tortura. Amarraram-no ao potro com algumas tiras de couro e apertaram o quanto os músculos e a pele aguentaram. Ainda assim, o réu negou absolutamente tudo o que se havia apontado contra ele, elencou 243 pessoas que por motivos diversos teriam mentido à justiça dos homens e apensou outros 63 argumentos na intenção de provar que as alegações eram arapucas armadas por gente mal-intencionada. Os jurisconsultos eclesiásticos se apegaram à literalidade dos regulamentos. Não havia agora, como não houvera nos processos anteriores, provas cabais mostrando, sem margem a dúvidas, que Delgado cometera o crime de sodomia perfeita. O que se coletara lhes soava circunstancial, de maneira que ultrapassaria os rigores do Tribunal condenar à fogueira ou à forca, exclusivamente com base em convicções. Por isso a decisão: dez anos de degredo em Angola. Não há mais registros oficiais sobre o personagem.
Os processos inquisitoriais, que arrolam na Bahia por exemplo 67 pessoas entre 1591 e 1620 como praticantes de uma tão grave ofensa, dão aos contemporâneos a noção de que o Brasil colonial, em seus aspectos afetivos e sexuais, não está assim tão distante de nós. E infelizmente parece cada vez mais próximo no que ele tem de tacanhamente hipócrita, controlador e hierárquico.