Dos suínos abandonados ao aerossóis
Na semana passada o jornal O Globo publicou a notícia de que o Reino Unido oferecerá visto de emergência a 800 açougueiros. Além da informação inesperada, há outro componente curioso: o porquê disso. Com a implantação do Brexit e as consequências da pandemia, ocorreu um êxodo de trabalhadores do Leste Europeu. Uma ordem mais ou menos esperada. Depois da biologia, a economia sofria os sintomas. Resultado: quem cuida dos porcos? Agora o conjunto de países corre para trazer gente e para não sacrificar os bichos.
Brexit, vistos, Covid, porco, trabalhadores, leste europeu, tudo isso na mesma frase agora faz sentido. Entenderam que nada é simples?
A gente já tinha em mente que aquele inseto extirpado da cadeia alimentar poderia desencadear o maior dos desequilíbrios. É só usar a mesma lógica para tratar dos acontecimentos no “mundo civilizado”. Não quero tratar disso pela perspectiva do efeito borboleta e nem enveredar pelas teorias do caos. Prefiro, pelo menos neste texto, investir no cruzamento da notícia do O Globo com a perspectiva da falsa modernidade defendida por Bruno Latour e sua filosofia questionadora de uma establishment supostamente híbrido e sabido. A gente pensa que dá conta de tudo. Para ele, não mesmo.
“Aperte o mais inocente dos aerossóis e você será levado à Antártida e, de lá, à universidade da Califórnia, em Irvine, às linhas de montagem de Lyon, à química dos gases nobres, e daí, talvez, até a ONU, mas esse fio frágil será cortado em tantos segmentos quantas forem as disciplinas puras: não misturemos o conhecimento, o interesse, a justiça, o poder.
Note o tom de crítica e acidez, por gentileza. Não é uma ordem. E ele continua:
“Nós mesmos somos híbridos, instalados precariamente no interior das instituições científicas, meio engenheiros, meio filósofos, um terço instruído sem que o desejássemos.”
A apreensão que faço da relação entre a notícia dos suínos e com a cadeia de eventos possíveis apontados pelo aerossol do Latour (não literalmente) é que não há solução fácil. Desconfie sempre quando estes quase milagres de origem carnal vendidos como políticas de estado ou por meio de publicações ilustradas, estes costumam esbarrar na complexidade da vida e do indivíduo. Para milhões de britânicos parecia simples resolver os problemas fechando porteiras e piorando as condições de vida dos imigrantes. Mas o que fazer com os porcos? O que fazer com os empregados que herdaram genes e crachás de gerações anteriores e que ganharam e ganham a vida ao redor da fábrica de produtos com aerossol? Na suposta interposição de conhecimentos acabamos por surfar no superficial. Acreditamos entender de tudo, sermos híbridos e anteciparmos diante de uma ultramodernidade, situações que nunca se estabilizam. Quem vende solução drástica, fácil e rápida geralmente sai ganhando nesse processo. A urgência, criada ou real, contribui para tal processo. Além do Reino Unido, o Brasil de hoje nos mostra bem isso.