Bemdito

Ela é midiática e isso é bom

Cobertura jornalística e redes sociais tornaram a CPI exposta como nunca
POR Rogério Christofoletti
Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

Ninguém sabe como nem quando termina a CPI da Covid. Os mais céticos dizem que ela só fará espuma e não trará grandes mudanças no cenário político brasileiro, não aplicando as desejadas punições exemplares. Os otimistas garantem que os resultados vão dinamitar as colunas que sustentam o bolsonarismo, lavando a alma nacional. Se há dúvidas sobre onde chegaremos, também não se pode ter certeza de que a Comissão Parlamentar de Inquérito dure os 90 dias protocolares, pois já está em curso a coleta de assinaturas para prorrogá-la. Apesar do mar de interrogações, vou cravar uma certeza: nunca tivemos uma CPI tão midiática.

A minha afirmação não é lá muito corajosa, nem um pouco brilhante. Afinal, se a frase for exagerada ou equivocada, tanto faz. Não vai mudar a vida de ninguém. E convenhamos, ela também não é original ou astuta, pois cinco minutos bastam para juntarmos elementos que a confirmem.

Já tivemos outras CPIs desde a redemocratização nos anos 80. Várias foram transmitidas pelos canais públicos de TV do Senado ou da Câmara. As mais recentes também se espalharam pela Internet, mas nenhuma delas se tornou um palco tão efervescente quanto a atual. E eu vejo três fatores principais para isso: a motivação da CPI, a cobertura jornalística e o engajamento inédito de milhões nas redes sociais.

Se antes senadores se reuniam para investigar desvios de recursos públicos ou casos de corrupção, agora, eles tentam implicar pessoas e governos em ações e omissões que levaram a mais de meio milhão de mortos. Sim, a pandemia é uma tragédia devastadora que afeta todo o país de forma muito concreta. 

É difícil se deparar com alguém que não tenha perdido amigo ou parente para a doença; que não tenha sido afetado em suas finanças ou sobrevivência. É raro encontrar quem esteja insensível ou impermeabilizado diante da cratera que se abriu diante de nós em tão pouco tempo. De uma forma ou de outra, quem não perdeu alguém perdeu a esperança ou a perspectiva de viver melhor. Portanto, pela primeira vez na República, o motivo da CPI não era uma abstração, uma cifra insondável e etérea. Essa CPI que está aí tem nomes, sobrenomes, CPFs, viúvas, órfãos, sequelados.…

O tapete vermelho

A CPI é também o fato político mais importante do ano, e olha que já estamos na segunda metade de 2021. Essa dimensão justifica coberturas jornalísticas intensas, com equipes dedicadas, além da esperada corrida por furos ou informações exclusivas. A transmissão de sessões longas e muitas vezes sonolentas não está mais restrita à TV Senado; canais por assinatura capturam o sinal e colocam analistas de plantão para fazer arremates, por exemplo. Cinegrafistas e repórteres são escalados para acompanhar a chegada dos depoentes, como se fossem celebridades no tapete vermelho. Microfones transbordam do púlpito nas coletivas improvisadas do presidente, vice e relator da CPI.

Essa atenção ostensiva ajuda a estender a lona para o circo midiático. Nada escapa aos olhares e qualquer detalhe pode se converter na imagem do dia, na frase-lacração da internet. É um pós-teatro, é a mídia total, com drama, tensão, ruído e confusão.

O deputado Luis Miranda não só comparece à CPI como desembarca do seu carro vestindo um colete à prova de balas sobre o terno e uma Bíblia na mão. Renan Calheiros interroga testemunhas aproveitando “perguntas dos internautas”, numa clara estratégia de populismo digital. O relator da CPI deixa de ostentar seu nome na plaquinha de identificação na mesa para indicar o número de mortos pela pandemia e renova esse ritual diariamente. Outros membros da comissão apresentam áudios e vídeos durante seus 15 minutos (de fama?!) regimentais, dando às sessões uma atmosfera mais animada, pelo menos.

Mas não é apenas a semiótica que conta. A oportunidade também. Se os parlamentares veem na CPI um palco renovado para se apresentar aos eleitores, os jornalistas farejam nela também uma ocasião para fazer o seu trabalho. Tivemos testemunhas convocadas imediatamente após aparecerem em reportagens como fontes, por exemplo.

Checagem simultânea


Porém, esta CPI tem novidades jornalísticas. Esta é a CPI do fact-checking e do debunking. É a CPI onde dados e declarações são verificados em tempo real por agências especializadas, assessores parlamentares, repórteres e milícias digitais. É a CPI onde também se desbancam mentiras e mentirosos, como o áudio fora de contexto do mesmo Luís Miranda, apresentado pelo misterioso Luiz Paulo Dominguetti, e antes dele os manjados Eduardo Pazzuelo, Ernesto Araújo, Nise Yamaguchi e Fabio Wajngarten…

O terceiro motivo para uma CPI tão midiática é a adesão avassaladora de milhões de pessoas a comentar e a produzir conteúdos em suas redes sociais. Todos os dias somos soterrados por memes e paródias em vídeos que hipertrofiam a presença da CPI no imaginário nacional. A cada minuto, milhares de pessoas xingam, torcem, lamentam, gozam, tripudiam e analisam os rumos da investigação no Senado.

Os senadores estão atentos a isso, e não só colhem “perguntas dos internautas”, mas também buscam aumentar suas bases eleitorais. Na quinta passada, enquanto acompanhava o depoimento de Dominguetti, o presidente da CPI, Omar Aziz, comemorava no Twitter a marca de 150 mil seguidores. E foi pelo Twitter também que muita gente, inclusive eu, pedia ao presidente para cobrar do senador Flavio Bolsonaro que usasse máscara enquanto se dirigia à Mesa. Aparentemente, deu certo, pois Aziz insistiu até ser atendido…Uma CPI como esta pode ser apenas um grande e caro circo midiático, mas isso não é de todo ruim. Toda a atenção que ela chama pode significar mais preocupação de parte da sociedade para as decisões do Senado. Pode também despertar a curiosidade dos desatentos e desinteressados.

Mas mais importante: a gritaria e a confusão dramática desta CPI podem criar uma ânsia pela transparência que fortalece a democracia e a nossa cidadania. Acompanhar os interrogatórios, assistir às discussões, cobrar seus políticos pelas redes sociais são maneiras de fazer parte desse processo. Fazer parte é participar. Se a pandemia nos tocou a todos, que a CPI que leva o seu nome também seja uma preocupação nacional.

Rogério Christofoletti

Professor de Jornalismo da UFSC, é um dos criadores do Observatório de Ética Jornalística (objETHOS).