Em busca do “Amor pleno” no tempo de niilismo
O cineasta e roteirista norte-americano Terrence Malick inicia o seu filme Amor pleno (To the Wonder), de 2012, com imagens românticas de um homem (Ben Affleck) e de uma mulher (Olga Kurylenko). Seus nomes nunca aparecem na obra. As imagens se passam em Paris, depois em Mont de San Michel, na França — mesma locação de quase toda a filmagem de um outro filme, O ponto de mutação (1982), feito no início dos anos 90 e dirigido por Bernt Amadeus Capra. De temática ambientalista e filosófica, O ponto de mutação foi inspirado no best-seller de Fritjof Capra.
Prelude e Persifal são obras musicais do século XIX, compostas por Richard Wagner, o músico preferido de Friedrich Nietzsche. A trilha se repetirá pelo filme ao menos três vezes. E em momentos decisivos do enredo. A narrativa se dá em torno de 5 personagens centrais, mas vou me concentrar aqui em apenas três: 1) O homem, personagem feito por Afflick; 2) A mulher, personagem de Kurylenko, sua esposa; 3) E o padre, feito por Javier Bardem.
Passo, então, a ensaiar possíveis interpretações sobre os temas desses personagens. E o farei com a hipótese hermenêutica central de que vários tipos de amor são tratados no filme, e interpretados, no roteiro de Malick, partindo da crise do niilismo. Amor pleno é um ensaio sobre os amores em tempo de abandono, do desamor, em busca de um maravilhamento na vida, mas que encara o desafio de se buscar por algo, no momento em que o filósofo Benedito Nunes chamou de “tempo do niilismo”: tempo da devastação da terra, do totalitarismo, do esquecimento do Ser, da morte de Deus – assim como Zaratustra falava: “Como será possível? Este velho santo, na sua floresta, ainda não soube que ‘Deus está morto!’”.
O homem quase não tem falas no filme. Aparece quase sempre introspectivo. Mais preocupado com o seu trabalho, que parece ser o de um biólogo. Esse personagem de Affleck está quase em todas as cenas de romance, de conflito, de indiferença com as pessoas. Na maior parte do tempo, parece estar sob muita preocupação com uma possível contaminação do meio ambiente, a qual talvez teria sido causada por uma empresa mineradora ou de petróleo.
Affleck faz um personagem que está preocupado com a sobrevivência, com a saúde do planeta, e com o meio ambiente. A única cena em que parece esboçar um sentimento mais forte, fazendo-o sair da indiferença para com o outro e com o mundo, dá-se quando toma conhecimento, pela sua própria esposa, de que fora traído por ela.
Kurylenko faz uma personagem francesa. Mãe solteira de uma pequena menina. Os três aparecem muito juntos, na primeira parte do filme. A esposa parece ser a narradora da trama. Kurylenko faz uma personagem romântica, aparecendo na maior parte das vezes com a sua voz em off – recurso também presente num outro filme de Malick, A árvore da vida (2011). A esposa oscila entre estados de muita alegria e de muito sofrimento. Ela sofre por causa da sua paixão pelo biólogo.
Malick parece querer nos mostrar por essa personagem muitas pistas sobre o percurso comum do amor. Este sentimento que, quando surge, pode primeiro aparecer como adoecimento (pathos, paixão, doença em grego antigo). Um sentimento que nos dá uma afinação afetiva (Stimmung) com o mundo de modo esperançoso, mas sofrido.
O amor aparece pelos olhos da personagem de Kurylenko como completude. Algo que nos faz lembrar do discurso de Aristófanes, quando em um de seus famosos diálogos, O Banquete (380 a.C), Platão apresenta o que se pode entender com a concepção romântica de amor: o amor enquanto completude. Trata-se do amor da passagem sobre o mito das almas gêmeas: a estória de que o amor representaria o alegre e fortuito encontro com a metade, partida de nós pela ira divina. A metade que nos completava. E enquanto ainda não se encontrasse a tal metade, o mito diz que o amor retomaria a sensação de falta, de incompletude constante em nossas vidas mortais; vida que um dia esteve em conjunto com outra alma. Gêmea.
A personagem de Kurylenko acredita nisso. No mito platônico do amor. E isto a faz parecer adolescente. O filme a mostra sempre saltitando, saltitante de alegria, brincando no supermercado, nos enormes campos de alguma cidade pequena do meio-sul dos Estados Unidos. Mas a sua jovialidade não representa somente esperança. Ela também é uma personagem frustrada porque está sempre atrás do amor do personagem de Affleck. Amor que nunca o tem. Ele esboça participação nas brincadeiras dela, compartilha sorrisos, ainda que frios, mas parece não querer nunca seguir em frente no relacionamento, dar o passo do casamento. A sua liberdade e a preocupação com a Terra, com a saúde das famílias afetadas pelas substâncias tóxicas de alguma indústria, parecem impedi-lo de adentrar na tarefa de “completar” o “buraco” impreenchível da francesa.
A esposa, que, inicialmente, está saltitando de felicidade, começa a perceber a distância de seu companheiro, e passa a entrar em crise. As crises são tão intensas, que a violência e o ódio, nascidos do mesmo solo que o seu amor, vão tomando proporções que a levam a cometer o pior pecado entre um casal, depois do pecado da indiferença: a traição. E a traição não-gratuita. Aquela que não se faz por impulso erótico ou por encantamento apaixonado por um terceiro. Aqui, falo da traição por amor. A traição por certa vingança. Não se trata da vingança contra uma violência. Falo da traição que se dá contra a falta de amor. Contra o desamor.
Mas esse desamor não é sentido somente pela personagem de Kurylenko. O terceiro personagem selecionado aqui é feito por Bardem. Ele faz um padre em crise profunda também por um amor, por uma outra Pessoa: Deus. E é interessante notar que o padre aparece só em duas situações no filme: 1) Na igreja, com o som de sua homilia sobre o amor – especialmente, pregando uma Epístola de Paulo –; e no mundo profano, em bairros pobres e em presídios, consolando viciados, mendigos e presos.
No filme, o padre aparece muito menos que o biólogo. E parece dividir a narração em off com a francesa. A desesperança do padre se assemelha à da personagem de Kurylenko, quando descobre que seu “sonho americano” particular fracassara. Só que, quanto ao padre, a ausência, a indiferença, a sensação de abandono vêm do silêncio imortal. Do silêncio de Deus. Este Deus católico, que parece não se comunicar nunca. E ainda que até Seu próprio filho tenha encarnado como homem, feita Sua palavra carne, para o padre, Deus se ausentou. O padre sofre com o abandono de Deus – como Cristo, na cruz. Não aceita sua condição, questiona o silêncio, o nada de retorno.
Sua descrença é solitária e interior. Sua crise é de fé. E apesar de continuar seu trabalho catequético, internamente ele pede por mais. O padre parece buscar o amor pleno, o amor de The Wonder, do Maravilhoso, sobre o qual talvez São Paulo falava. Mas a indiferença de Deus o perturba, persiste. São Paulo, que, segundo Nietzsche, oferece-nos uma leitura platônica de Cristo, sabe que o amor, aquele pleno, somente poderia ser encontrado com Deus, com a Verdade eterna. A questão, todavia, é que, diferente da francesa, que busca este “amor pleno” no seu marido, o padre parece estar frustrado por não encontrar o amor na plenitude de Deus.
Em uma das cenas, o faxineiro da igreja é quem parece catequizar o padre, ao dizer que Deus está na luz que atravessa os vitrais. Aquele homem simples, em meio aos seus afazeres, sugere que é preciso tocar na criação, tocar na materialidade do amor em forma de luz do sol. Mas nada disso parece convencer o personagem de Bardem. Então, estaria Malick nos dizendo que esta frustração é maior que o sacerdote, que não se trata de uma mera crise momentânea, comum entre os que têm fé e possuem o preço da dúvida racional?
De modo cinemático-poético, talvez Malick esteja querendo nos dizer que o padre percebera que a desesperança é um “destino”; o momento mesmo em que vivemos, do abandono, tempo da impossibilidade de se atingir Aquele maravilhoso Ser, the Wonder. E o preço a ser pago é a errância do Seu rebanho, em abandono, incompleto, traindo-se por amor, em meio à intoxicação da Terra, com o amor não correspondido como condição existencial.