Bemdito

Fase oral

Para uma mãe cansada, cada gole é sinal de alívio
POR Rhaina Ellery

A pior sensação que ela poderia ter era lembrar do que tinha acontecido. 

No dia anterior, a filha berrou às quatro e cinquenta da manhã, ela consultou o celular ao saltar cambaleante da cama. Antes de se debruçar sobre o berço cheirando a cocô e lavanda Jonhson, imaginou o pai da sua filha acordando do outro lado da cidade e calçando o tênis de corrida. O choro da bebê feria seu ouvido como uma britadeira que arranca o asfalto. Era a terceira noite de dentes rompendo o sono e rasgando a carne mole da criança. A vizinha sugeriu alimentos gelados, a avó ordenou uma consulta médica e ela só queria um foguete para a lua. Um dia sem gravidade, no completo silêncio. 

Quando engravidou, mesmo tendo o conhecido vômito como único companheiro, assumiu que ia parir a felicidade, nem que fosse a fórceps. Ela seria completa ao expulsar de si seu suposto desejo materno. Pouco importava se o ex-namorado seria um bom pai, ela compensaria qualquer falta.

A bebê enfiava toda a mãozinha na boca na tentativa de sugar algum alívio para a dor. Babava e arranhava o ombro da mãe com suas serrinhas afiadas que inauguravam o novo momento: a mordida. Há algumas semanas, a boca da menina era o território mais explorado da casa, tudo era provado e sentido com os olhos da língua. 

Os nenéns nascem com a persuasão embutida nas cordas vocais e nas glândulas lacrimais. Sua filha, pelo jeito, era a mais convincente dentre todos. Desde que saiu de mim, ela chora, isso era tudo que a mãe conseguia dizer quando o porteiro interfonava com sua falsa preocupação ou quando, no supermercado, alguma senhora parava de procurar o detergente para balançar a cabeça como quem nega dinheiro a um pedinte.

A mãe vivia com a garganta entalada, forçava engolir o choro como se comesse um novelo de lã. Só uma coisa seria capaz de ajudá-la a tragar a frustação, mas ela tinha feito uma promessa de não pensar mais naquilo. 

O dia transcorreu entre lágrimas, saliva, bananas congeladas e chupetas atiradas ao chão. Ao entardecer, o pai chegou para buscar a filha trinta minutos após o combinado. A cada quinze dias, ele fazia o mesmo ritual cênico: levava a bebê para passear na orla e tirava fotos sob a luz do pôr-do-sol. A cada clichê postado, encontros eram marcados com novas mulheres. Em comum, todas achavam que ele era um excelente pai. 

A mãe entregou a menina e não deu nenhuma recomendação. Te amo, Zizi, foi só o que disse, ainda vestida com a camisola encharcada de saliva fresca.

Fechou a porta com o pé, arrastou-se até a cama e dormiu. Acordou já de madrugada com a campainha gritando. Era Zizi, bracinhos abertos e boquinha inchada. Ela não para de chorar, o pai falou ainda segurando a porta do elevador. 

Foram as duas para a cama e o nem o cansaço serviu de analgésico para menina. Enquanto a mãe tentava segurar suas gotas de lágrima olhando para o teto, o mantra que a acompanhava desde o seu nascimento materno surgiu: por que acreditei que eu me tornaria uma pessoa melhor? Então, como quem reage a um tapa na cara, resolveu tomar a única atitude possível para acalmar a sua humanidade. Abriu a gaveta de calcinhas, vasculhou entre os livros da estante. Nada. Correu até o móvel onde dormiam as vassouras e as baratas, ela lembrou onde ele estava. 

Aliviada, agarrou o litro de vodka, tomou um gole no gargalo e encostou a boca na orelhinha de Zizi. Amanhã eu paro de beber, jurou. Do resto, ela continuaria sem lembrar.

Rhaina Ellery

Advogada pública, especialista em escrita e criação e mãe de duas meninas.