Fortaleza e o prédio com elevador para carros
O que a cafonice do fortalezense rico diz sobre a quinta cidade mais desigual do País
Jáder Santana
jaderstn@gmail.com
O mau gosto dos ricaços é o cálice de vinho dos que parcelam em 42 vezes a compra do conjunto de sala e cozinha na Ponto Frio. É a vingança silenciosa dos que têm a carteira abarrotada por cartões da C&A, Riachuelo, Casas Bahia, Esplanada e Casa Pio. O gozo de quem espera a promoção de almoço a dez reais antes de fazer o pedido nos aplicativos de delivery. Se seus dias de classe média estão cinzentos, a notícia a seguir pode expandir o sol em seu coração: “Fortaleza terá 1º prédio com elevador para carro e vaga na sala”.
Desenhe a cena em sua cabeça. Temporada de chuvas fortes em Fortaleza, algum dia de março. A Mercedes azul neon, aquela cor que decora a maior parte das hamburguerias chiques da Aldeota, desliza veloz pela Aguanambi, deformando as bandejas e os braços da suspensão e do amortecedor nas crateras profundas do asfalto. O condutor, distraído ouvindo o último episódio do podcast do Leandro Karnal, vira a esquina da Abolição e segue até seu prédio de luxo. Encaixa o carro em um elevador apertado, aperta o botão de subir e finalmente estaciona o veículo ao lado do sofá da sala, lambrecando o mármore do piso com lama, esgoto e urina.
Pelo módico valor de R$ 4,2 milhões, o rico fortalezense poderá realizar seu sonho kitsch de despejar dióxido e monóxido de carbono, fuligem e enxofre nos pulmões da esposa e dos filhos sentados obedientes em torno da mesa posta para o jantar. 36 famílias poderão desfrutar da visão algo dadaísta de um automóvel flutuando à altura do vôo dos urubus que vez por outra são vistos na região central de Fortaleza. 36 sortudos em uma população de 2.687 milhões de habitantes. 36 motivos para gargalhar.
Os exclusivíssimos apartamentos – um por andar, 350m² -, reunirão, certamente, os figurões que estamos acostumados a ver no circuito AAA do Instagram. A receita é sempre a mesma: harmonização facial, lente nos dentes, camisa polo, bermuda caqui, férias divididas – os pais em Trancoso, os filhos em Jurerê Internacional. A construtora do edifício avisa que o projeto segue os moldes de outros dois semelhantes erguidos em Goiânia e Belo Horizonte. Será a cafonice o esporte oficial da elite nacional? Uma dessas unidades na capital goiana, aliás, pertence ao cantor Gusttavo Lima, que pagou R$ 7 milhões pelo mimo.
As obras que levantarão o edifício serão iniciadas no segundo semestre de 2021 e devem durar até quatro anos. Precisaremos esperar um pouco até saber de quem exatamente vamos rir. Enquanto não temos essa certeza, engolimos aquele riso meio amargo ao lembrar que a Região Metropolitana de Fortaleza é a quinta do País com maior índice de desigualdade de renda, diferença que se tornou ainda mais acentuada durante o período de isolamento social.
Segundo dados levantados no fim do ano passado por pesquisadores da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), do Observatório das Metrópoles e do Observatório da Dívida Social na América Latina (RedODSAL), os mais pobre da Grande Fortaleza, 40% da população, têm renda média per capita mensal de R$ 96,60. Enquanto isso, os 10% mais ricos têm renda média de R$ 4,8 mil. Para a classe intermediária, o valor é de R$ 817,26. A população mais pobre sofreu redução, durante os meses de isolamento, de 39,6% no valor de sua renda.
O boletim Desigualdade nas metrópoles ainda destaca o incremento negativo na pontuação do indicador Gini, que mede a desigualdade de renda numa escala de 0 a 1. O índice Gini da Grande Fortaleza ficou em 0,675 nos meses de abril, maio e junho de 2020. No mesmo período de 2019, marcou 0,645. Quanto mais alto o índice, pior é a desigualdade de renda na região.
A nível estadual, a situação é ainda mais preocupante. Segundo registros do Cadastro Único, do Governo Federal, o Ceará tinha, em outubro do ano passado, 5,1 milhões de pessoas na pobreza ou extrema pobreza. Desse total, mais de 3 milhões sobreviviam com até R$ 89,00 mensais. Trata-se do maior número de famílias na pobreza desde o final de 2014.
Há algumas semanas, ficamos sabendo que o Brasil registrou neste ano atípico, apesar da intensa desaceleração econômica, dez novos bilionários no ranking nacional. Dos 2.755 bilionários que circulam pelo mundo, 65 são brasileiros. Três são cearenses: o médico Cândido Pinheiro Koren de Lima, fundador da Hapvida, e seus dois filhos. A fortuna do pai em 2021 é de US$ 3,7 bilhões. No ano passado, era de US$ 1,6 bilhão.
Tanto os dados do boletim Desigualdade nas metrópoles quanto as informações do Cadastro Único do Governo Federal cobrem os meses de pandemia do ano passado. A apuração se encerra antes da segunda onda, mais devastadora que a primeira, e antes da renovação do auxílio emergencial com um valor muito inferior ao que era pago em 2020. No fim deste ano, os números que apontam a desigualdade de renda devem ser ainda mais alarmantes.
Enquanto isso, os homens mais ricos do Brasil recebem em suas caixas de e-mail um convite para adquirir uma unidade no super exclusivo empreendimento que permite estacionar o carro ao lado da sala pela bagatela de R$ 4,2 milhões. Não é tão caro, preço justo a se pagar pelo reforço na sensação de privilégio e isolamento em relação ao mundo real. No fim desse e-mail, nas linhas miúdas, talvez haja a importante observação de que o funcionário da portaria terá o próprio elevador de serviço para seu Gol 94.
Jáder Santana é jornalista e editor do Bemdito. É mestrando em Estudos da Tradução pela UFC e curador da Festa Literária do Ceará (Flac). Está no Instragam e Twitter.