Bemdito

Morte negra, lucro branco

Capitalização da Farm no caso Kathlen Romeu mostra que ainda hoje continuam a vender os corpos negros
POR Izabel Accioly

“Essa historinha que é contada há anos na televisão que foi troca de tiro, que a polícia foi recebida a tiro… Quem foi recebida a tiro foi a minha filha. A minha única filha”. Jaqueline de Oliveira Lopes é mãe de Kathlen Romeu, mulher negra, 24 anos, grávida, assassinada com um tiro na cabeça. 

Moradora do Complexo do Lins, no Rio de Janeiro, Jaqueline se antecipa às desculpas e justificativas para o assassinato de sua filha. Seu luto é interrompido pela defesa da memória de sua filha, pela necessidade de denunciar o que já foi tantas e tantas vezes denunciado: o genocídio do povo negro brasileiro. O boletim A Cor da Violência aponta que 86% das pessoas mortas em ações policiais no Rio de Janeiro são negras. Não é mera coincidência, é plano.

Kathlen trabalhava como vendedora na loja de roupas Farm. Em suas redes sociais, a empresa publicou uma imagem de fundo preto onde se lia #JUSTIÇAPORKATHLEN em letras brancas. Na legenda, a marca lamentava o assassinato da trabalhadora e anunciava um código que, ao ser informado no ato da compra, faria a comissão daquela venda ser revertida para a família de Kathlen. Mesmo depois de morta, a Farm lucrou com o seu trabalho, capitalizou o assassinato da jovem grávida com um tiro na cabeça.

Esta não é a primeira vez que a marca busca lucro com seu racismo. Em 2017, a empresa criou uma estampa para as suas peças que retratavam pessoas negras escravizadas. Em 2014, a Farm publicou em suas redes sociais uma modelo branca fantasiada de Iemanjá. Depois da repercussão negativa desses casos, a empresa criou um comitê de diversidade. Aparentemente, isso não foi suficiente para transformar o modo racista com que a empresa atua. Não basta criar um setor para lidar com esses casos, é fundamental que existam transformações mais profundas.

O caso da Farm explicita o racismo que gosta da negritude para consumo. Amam a cultura negra, odeiam os corpos negros. Arruínam os nossos símbolos, os embranquecem, nos exotizam, vendem a preços altíssimos, maculam o nosso sagrado. Transformam a morte negra em lucro branco. O racismo se atualiza. A Lei Áurea foi assinada em 1888, mas ainda hoje continuam a vender os corpos negros.

Izabel Accioly

Mestra em Antropologia Social pela UFScar, é pesquisadora do Grupo de Estudo e Pesquisa sobre Relações de Poder, Conflitos e Socialidades da USP/UFScar.