Bemdito

Não é o conservadorismo que protege a juventude

A importância da educação sexual em um país onde 20,1% das meninas com idade entre 13 e 17 anos relatam algum caso de violência sexual
POR Geórgia Oliveira
Movimentos de mulheres em ato contra a perda de direitos (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Na última semana, abordei aqui a absurda legislação aprovada pela Câmara Municipal de Fortaleza e sancionada pelo prefeito Sarto Nogueira que criava uma semana de campanhas contra o aborto e o uso de contraceptivos. Um tsunami de críticas à lei e ao prefeito de Fortaleza ganhou repercussão nacional e, tentando se recuperar da enorme pressão popular sobre o tema, o executivo resolveu primeiro publicar um decreto regulamentando a não aplicação de alguns dispositivos da lei e, mais recentemente, encaminhou à Câmara Municipal um projeto que veta parcialmente a lei, justamente aqueles dispositivos que ferem direitos reprodutivos e evidenciam bem a visão conservadora sobre o assunto.

Naquela mesma semana, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou os resultados da Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE) relativos ao ano de 2019 e que dão conta da relevância e da necessidade da educação sexual nas escolas. A pesquisa analisou dados recolhidos por questionário de 125.123 alunos de todo Brasil, com idades de 13 a 17 anos e matriculados em escolas públicas ou privadas.

Contemplando os escolares matriculados no 7º ao 9º ano do Ensino Fundamental e na 1ª a 3ª séries do Ensino Médio, o relatório traz dados reveladores sobre a relação dos adolescentes com o contexto familiar e o ambiente escolar, seus hábitos de saúde, o contato com substâncias como álcool, cigarro e drogas, a percepção sobre segurança pública e pessoal e, com destaque, sobre violência sexual e o início da vida sexual dessa população.

De acordo com os dados do PeNSE, 14,6% dos alunos de 13 a 17 anos alguma vez na vida foram tocados, manipulados, beijados ou passaram por situações de exposição de partes do corpo contra a sua vontade. Desagregando esse dado a partir do sexo, 20,1% das meninas relataram ter passado por esse tipo de violência, mais do que o dobro do valor observado para os meninos (9,0%). Quanto ao responsável pela agressão, aparecem com destaque o namorado ou namorada (citado por 29,1% dos adolescentes que sofreram violência), amigos(as) (24,8%), desconhecidos (20,7%), familiares (16,4%), outras pessoas conhecidas (14,8%) e, finalmente, o pai, a mãe ou o responsável (6,3%).

Colocando os dados apresentados pela pesquisa em afirmações básicas, temos o seguinte: a violência sexual é uma ocorrência dolorosamente comum na vida dos adolescentes brasileiros, com destaque para o fato de que 1 em cada 5 meninas entre os 13 e os 17 anos sofreu algum tipo de agressão sexual. Os autores dessa violência são na maioria pessoas próximas e conhecidas, muitas das quais possuem uma relação de afeto com o adolescente.

A pesquisa evidencia ainda que o número de alunos e alunas que sofreram violência sexual é maior nas escolas públicas em relação às escolas particulares, revelando fortemente a necessidade de políticas educacionais, de acolhimento e proteção executadas por estados e municípios e voltadas a crianças e adolescentes vítimas de violência sexual.

A primeira relação sexual
Outro tópico que chama a atenção no relatório PeNSE é aquele que fala sobre a iniciação sexual dos alunos questionados. Entre os alunos de 13 a 17 anos, 35,4% já haviam tido relação sexual alguma vez e, desses adolescentes, 36,6% deles tiveram a primeira relação sexual com 13 anos de idade ou menos. A média de idade apontada para a primeira relação sexual foi de 13,4 anos para os meninos e de 14,2 anos para as meninas.

Embora esses dados possam escandalizar os pais que defendem a virgindade, a honra e a retirada de qualquer conteúdo que apresente a descoberta sexual e a relação com o corpo das escolas (como narrado neste artigo de Jáder Santana sobre o caso da Escola Móbile), a realidade é que adolescentes se interessam pelo sexo e vão, em algum momento, buscar a prática sexual, muito provavelmente à revelia do conhecimento e orientação dos pais, principalmente aqueles menos abertos ao diálogo e mais conservadores.

Esse interesse é natural e inevitável, até mesmo pelo seu status de pessoa em desenvolvimento. A diferença se encontra no grau de informação que esses adolescentes vão ter para raciocinar sobre o sexo, a escolha dos parceiros, o respeito a sua vontade e a proteção do próprio corpo.

Sexo com proteção
O PeNSE também questionou os adolescentes sobre as práticas de saúde sexual: 63,3% dos estudantes utilizaram a camisinha na primeira relação sexual, o que dá conta de um contingente significativo de adolescentes que não utilizaram o preservativo para proteção contra doenças sexualmente transmissíveis ou para prevenção da gravidez indesejada. Essa última questão recaiu notoriamente sobre as meninas, das quais 45,5% que já tiveram relação sexual relataram ter utilizado a pílula do dia seguinte alguma vez na vida e 7,9% já haviam engravidado.

Os números apontam para uma realidade preocupante: por mais que informações sobre saúde reprodutiva (em um sentido muito mais biológico) sejam abordadas na maior parte das escolas, a educação sexual voltada para o debate e a informação sobre a sexualidade, a diversidade, a importância de escolhas saudáveis para a prática sexual e o essencial respeito ao consentimento parece encontrar obstáculos na atitude simplória e fundamentalista emplacada principalmente pelos conservadores de que crianças e adolescentes não devem saber absolutamente nada sobre sexo, nem mesmo que ele existe.

As consequências dessa desinformação são justamente aquelas que movimentos contra a educação sexual pretendem evitar: a prática sexual cada vez mais precoce e desinformada, que expõe adolescentes à DSTs e à gravidez indesejada, afetando de forma notória as meninas, que precisam se expor ao risco de um aborto ilegal ou lidar, quase sempre sem apoio, com o desafio de uma gestação e da criação de um filho.

Para além da importância e do papel essencial da educação para que crianças e adolescentes identifiquem e relatem situações constrangedoras e de agressão em contexto de violência sexual, precisamos dar três passos à frente e pensar que a informação e a discussão sobre sexualidade e violência na escola deve ser ampliada para contemplar também os sentimentos que acompanham o início da vida sexual e informações que ajudem a decidir quando os jovens se sentirão prontos para essa experiência, englobando orientações sobre consentimento, respeito e os cuidados que devem ser tomados. Pode não ser fácil abordar o assunto, mas as consequências são custosas demais para deixarmos crianças e adolescentes desinformados e tratarmos a questão como uma inexistente “ideologia de gênero”.

Se formos analisar ao pé da letra quem efetivamente propaga ideologia e doutrinamento sobre sexo e gênero por aí, fica claro que são aqueles que, sob o manto do conservadorismo e da proteção da família, tentam de toda forma encaixar seres humanos em caixinhas e papeis sociais da família tradicional, bem como abrem espaço não só para que crianças e jovens sejam vítimas de violência sexual, mas também para que estes estabeleçam relacionamentos e relações sexuais baseadas na falta de conhecimento, diálogo e respeito e nos estereótipos retrógrados de “homem pegador” e “mulher pura e virgem”, abordados brilhantemente pela professora Paul Brandão aqui e aqui.

A verdade é que a adolescência é uma grande cena de sexo assistida ao lado dos pais. Resta saber se ela vai ser só constrangimento, conservadorismo e campanhas contra o aborto e os métodos contraceptivos ou se podemos usar esse espaço de desenvolvimento para ensinar de forma responsável sobre saúde reprodutiva e sexualidade.

Geórgia Oliveira

Pesquisadora em violência de gênero, é mestra em Direito pela UFC, professora universitária e atua com divulgação científica em pesquisa jurídica no projeto Pesquisa e Direito.