No Brasil, o golpe é regra, e não exceção
No dia anterior ao 57° aniversário do golpe civil-militar de 1964, os três comandantes das Forças Armadas do Brasil pediram demissão ao atual presidente do país. No dia seguinte ao aniversário, em 31 de março deste ano, cheguei a publicar um artigo nesta coluna, chamado Não vai ter golpe. Podemos respirar aliviados?, sobre a possibilidade de mais um golpe militar ocorrer no Brasil.
Basicamente, argumentei, naquele contexto de março, sobre como, em verdade, o golpe já se deu. E foi em 2016, devido ao impeachment de Dilma Rousseff. No texto, também falei sobre como temos uma tradição golpista no Brasil, que remonta à criação da República. Também cheguei a mencionar sobre um nomos de exceção que poderia estar já no período colonial, como uma marca constitutiva do país.
Bem, de março para cá, nesse final de julho, um novo fato importante se somou às contínuas ameaças de golpe, que, até então, eram feitas pelo presidente e também pelo seu filho, Eduardo: o de que, sem voto impresso, não haverá eleições em 2022. É óbvio que esta é uma estória inventada pelo bolsonarismo para justificar uma possível derrota de Jair Bolsonaro, e, assim, também se poder testar a força dos militares e paramilitares-mafiosos – para não usar “milicianos”, termo muito leve para o que são.
Mas na coluna de hoje, não pretendo discutir as reais justificativas dessas ameaças de golpe. Também não pretendo comentar a ameaça mais recente, a qual teria sido feita pela suposta declaração do general Braga Netto ao Estado de São Paulo, na última semana. Netto teria feito um aviso ao líder da Câmara, Arthur Lira, de que o Brasil não teria eleições em 2022 caso não fosse aprovado o voto impresso.
Somando-se a essas ameaças, é importante destacar o presente momento em que possivelmente o chamado “centrão” assumiu a República sub-repticiamente, numa tentativa de alterar o sistema de governo presidencialista brasileiro para uma espécie de parlamentarismo fisiológico – talvez, assim, para se poder diminuir a força política de uma eventual vitória eleitoral de Lula, em 2022.
Nesta coluna de hoje, pretendo muito mais trazer os nexos históricos dessas tentativas golpistas com a nossa história republicana, em que, no Brasil, o golpe militar é regra, e não exceção.
Tradição golpista
A seguir, tentarei resumir alguns fatos históricos, os quais talvez possam nos ajudar a entender melhor que golpe é um elemento constitutivo da República brasileira. Para isso, com base no artigo escrito por Ana Suelen Tossige Gomes e por Andityas Soares de Moura Costa Matos, pesquisadora e pesquisador, respectivamente, ligados à Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), elenco alguns fatos históricos sobre a nossa verdadeira tradição golpista no Brasil.
O artigo tem como título O estado de exceção no Brasil republicano e foi publicado em 2017, na Revista Direito e Praxis (UERJ). No texto, Gomes e Matos fazem uma genealogia dos períodos em que a República Federativa do Brasil, proclamada em 1889, esteve em estado de exceção.
Como se pode ver, Gomes e Matos trazem alguns dados impressionantes. Somado a eles, recordo também das medidas de exceção da Operação Lava-Jato:
1. Durante a chamada “República Velha” (1889-1930), que são os primeiros 40 anos republicanos brasileiros, governou-se por 2.365 dias em estado de sítio. Ou seja: dos 40 anos, quase por 6 anos e meio, o governo brasileiro se fez em estado de exceção declarado;
2. Após o “Governo Provisório” (1930-1934) de Getúlio Vargas, no período “democrático” de seu governo , de 1934 a 1937, do total de 3 anos, governou-se por 658 dias em estado de sítio: ou seja, dos 3 anos de governo, quase 2 anos foram em estado de exceção;
3. Mesmo durante o período do “Estado Novo” (1935 a 1937), devido ao medo de uma revolução comunista, governou-se por todo este período por meio de institutos jurídicos excepcionais. Vale destacar o papel fundamental do jurista Francisco Campos, conhecido como Chico Ciência, na elaboração da Constituição de 1937. Ao todo: 3 anos em estado de exceção;
4. Durante o período democrático entre 1946 a 1963, ocorreu um golpe preventivo contra um golpe iminente contra o Presidente Juscelino Kubitscheck;
5. Em 31 de março de 1964, como parte da Operação “Brother Sam”, iniciada pelo então presidente dos Estados Unidos, J.F. Kennedy, que era dos Democratas, as Forças Armadas do Brasil, junto com a elite capitalista nacional, deram um golpe civil-militar (1964-1985). No total, foram mais de 20 anos em pleno estado de exceção. Além disso, com o uso do recurso de um dispositivo legal específico, o do “Ato Institucional n.5” (AI-5), que suspendia direitos fundamentais. Sobre isso, destaco que um dos elaboradores do dispositivo jurídico foi o mesmo jurista de ideologia autoritária por trás da Constituição de 1937, Francisco Campos;
Sobre isso, é interessante comentar sobre como o AI-5 é, em verdade, um verdadeiro exemplo do que Giorgio Agamben, no seu Estado de exceção (2003) chama de ato com “força-de-Lei“, ou seja, um ato institucional inválido, mas com força como se Lei fosse, ao mesmo tempo que fazia das Leis formalmente válidas, como se a própria Constituição da época, e outras leis, estivessem revogadas, sem efeitos, como se ineficazes estivessem. “Força-de-Lei”, de acordo com Agamben, é a via de exercício de poder próprio do estado de exceção: um ato de força operado na anomia, mas apresentado como jurídico, ou um ato jurídico ineficaz;
6. Da Nova República, iniciada em 1988, no Brasil, vale lembrar que todos os governos, de FHC, mas também de Lula e de Dilma – como no caso das excepcionalidades do tempo da Copa de 2014 –, até hoje, tem usufruído do abuso de Medias Provisórias, que funcionam, tecnicamente, como decretos-lei. Além disso, já nos anos 2010, surge a máquina acusatória em exceção permanente, chamada por “Operação Lava-Jato”. Sob as lideranças do ex-juiz Sérgio Moro e do procurador da república Deltan Dallagnol, hoje já comprovadamente comprometidos com o objetivo final de prender Lula e tirá-lo da disputa política das eleições de 2018.
Resta saber se a narrativa bolsonarista pela suspeita das urnas eletrônicas, em favor do voto impresso, para além de ser um possível retrocesso técnico-eleitoral, será também um modo de justificar mais um golpe civil-militar. Não me arriscaria a prever o futuro. No máximo, diria que é ainda algo improvável. Ainda.
Mas também não acho que devemos estar tranquilos, pensando que a ausência de Trump neste jogo político asseguraria uma maior estabilidade política na América Latina. O golpe em Evo Morales, na Bolívia, feito sem o menor pudor; também sem surpresa, houve o episódio dos mercenários estrangeiros em território venezuelano; e, antes disso tudo, houve o golpe parlamentar, no Paraguai. Mais recentemente, neste tempo pandêmico, a instabilidade política no Equador; e, por último, o assassinato do presidente do Haiti.
Este realmente não é um momento tranquilo para os americanos, nem para os do Norte, como não se pode esquecer, quando no episódio da tentativa de invasão do Capitólio após a derrota eleitoral de Trump.
Assim, diferentemente do que disse no meu artigo de março, não afirmo retoricamente, mas questiono: vai ter golpe? Se tiver, ou não, o que temos de fazer? Como agir?
Até aqui, tentei fazer uma breve história dos golpes na nossa República frutífera. Mais do que um texto informativo, tal tarefa também pode ter um objetivo outro. No seu último texto, Teses sobre conceito de história (1940), na Tese VIII, Walter Benjamin tem a famosa passagem: “[a] tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’, no qual vivemos, é a regra.”. Mas seria interessante, também, estarmos atentos, ao que Benjamin fala logo em seguida: “[p]recisamos atingir um conceito de história que corresponda a esse dado. Então veremos que a nossa tarefa é a de induzir ao estado de exceção efetivo; e desse modo, melhorará a nossa posição na luta contra o fascismo”.
Não me atrevo a ser intérprete dessas passagens. Porém, deixo a hipótese de que, talvez, o que vivemos, hoje, no Brasil, com o retorno do recalcado fardado, esteja diretamente ligado ao modo como a Nova República, a da Constituição de 1988 – que tem a minha mesma idade – lida com a memória, como história, de sua própria tradição republicana, marcada por golpes e tentativas de golpe.
Como orienta Benjamin, precisamos de uma história outra, que corresponda a este dado histórico brasileiro; uma que conte não uma história de fracassos causados pelas vitórias burguesas e suas conquistas coloniais, mas uma história de resistências políticas coletivas, de promessas ainda por serem cumpridas.
Talvez só assim poderemos induzir o “estado de exceção efetivo”. Não como um contragolpe, como se pode pensar, mas sim, talvez, como aquilo que Ana Suelen Tossige Gomes tratou no seu O direito no estado de exceção efetivo: “como aquele estado do mundo que Benjamin chamou de ‘justiça’”.