Notas sobre O Conto Da Princesa Kaguya #2
No segundo episódio do ensaio sobre a animação japonesa de Isao Takahata, uma análise da linguagem, dos movimentos e das correntes do filme
Cauby Monteiro
cauby.ecm@gmail.com
Dentro da tradição da animação narrativa, existem duas correntes que parecem ter se desenvolvido com mais força durante a sua história: a realista e a expressionista. Como o próprio nome já indica, uma se preocuparia em tratar o movimento o mais próximo possível daquele da realidade. É aquela que nos acostumamos nos filmes da Disney, em que era comum os animadores passarem horas analisando o movimento de atores reais ou animais de verdade.
Dissecar frame a frame o movimento para melhor expressá-lo dentro da animação. E até apelar para a rotoscopia, ou seja, desenhar por cima da filmagem, uma arte em si mesma, mal vista por alguns puristas da animação. Nesse sentido, há uma regra que controla esse mundo, e até para o afastamento ou a quebra dessa regra, é preciso seguir outra regra: se puxar o rabo de uma vaca faz mexer o seu pescoço é porque existe uma vértebra imaginária que liga os dois.
A expressionista não liga para regras: é o voo do Superman dos irmãos Fleischer, um borrão de cores no céu, respeitando nada além da beleza do movimento da luz. É a loucura, já indicada pelo nome, dos Looney Tunes, em que uma arma que machuca um pato não faz cócegas em um coelho, em que o movimento de andar a meio passo não tem relação de dívida com a realidade imediata: é limitado apenas pela imaginação do animador. A metalinguagem de Chuck Jones ou Tex Avery eleva a animação ao seu próprio sentido, ao seu próprio cogito: Me movo, logo existo.
Lógico que não existe regra de exclusividade. Quase todas as animações trabalham com as duas formas de criação. Mesmo porque, como já havia dito na coluna anterior, não é que uma não existisse sem a outra, mas uma se fortalece a partir da outra. O Conto da Princesa Kaguya é um dos exemplos mais radicais deste fato.
Anteriormente, falei de como Kaguya é um exemplo claro da animação. Ela cresce a olhos nus, como um broto de bambu, algo só possível nessa arte: ela é puro domínio do tempo através do movimento. Mas durante a primeira parte, ocorrida na floresta, o que vemos é essa submissão às regras do movimento do mundo. Kaguya, em momento de descoberta, não se importa com isso. É com prazer que se conforma à gravidade da realidade. É a beleza desse movimento previsto da natureza que a encanta. Do gosto das frutas à cantoria da molecada com quem ela se une, o mundo para ela é o que interessa. Aquele mundo, visto daquela forma, com o ar das árvores a lhe encher o pulmão.
Com a mudança imposta por seus pais, que acreditam – após brotarem da árvore de bambu tecidos de seda e ouro – que o seu lugar é aquele da realeza, ela passa a experimentar outra realidade, outro conjunto de regras. Com a mudança para um palácio, longe da natureza, o filme constrói-se através de outros pressupostos. O movimento é mais controlado. A câmera mais livre da natureza é agora estática, conformando-se à arquitetura japonesa geometricamente perfeita. O filme de liberdade que vimos até então passa a ser mais um filme japonês, belos muitos deles, mas que têm na falta de liberdade, simbolizada pelas linhas retas de suas construções, o seu tema central.
Kaguya passa a ter seu próprio movimento cerceado, afinal não é digno de uma princesa correr livremente, sujar-se de terra, brincar com camponeses. Ela deve se portar como nobreza, através de movimentos calculados, expressar-se para não deixar transparecer as suas emoções. Vestir belas roupas que aprisionam seus membros, escondendo-os de si, dos outros e do próprio mundo. Conformar-se, de novo, a uma nova ideia de beleza. Não a de cabelos soltos esvoaçando ao vento, mas a de cabelos presos, sobrancelhas tiradas e dentes pintados de preto.
Essa beleza construída, mas que ainda guarda a força selvagem de outrora, chama atenção de pretendentes. Mas ela rejeita todos na esperança de reencontrar o amor infantil e livre de outrora. Pede presentes estapafúrdios que eles tentam cumprir, indo até o cúmulo de enganá-la com estratagemas ridículos. Quando até a figura máxima dessa nova regra imposta à ela, o imperador, tenta conquistá-la, à força ainda por cima, ela percebe que não pode mais viver ali.
A arte da animação é aquela do movimento criado. É uma definição limitadora como todas são, mas serve por agora. Se o cinema é composto pelo movimento falso de 24 quadros por segundo brutalmente retirados da realidade imediata, a animação utiliza o mesmo princípio científico para dar aos seus artistas aquilo que Van Gogh acreditava ser maior que a fé em Deus: o poder de criar.
Porém, tanto a animação quanto o cinema, a partir do momento em que ambicionam uma forma narrativa, precisam construir uma linguagem para tal. A discussão do que seria essa linguagem é ampla e não é aqui o lugar para tomá-la. Mas a verdade é que a animação, para ser bela, não necessita de planos, de montagem, de enquadramentos. O movimento é o suficiente e há toda uma tradição, de Ruttmann a Brakhage, que comprova isso: a abstração é natural a essa arte.
Como disse, mesmo a liberdade inicial de O Conto da Princesa Kaguya é conformado a certas regras de realismo. E mesmo a liberdade – já citada aqui – da câmera, ainda é submissa a uma forma de fazer essa arte, ou seja, ainda há a ideia de câmera. Ainda existem planos e enquadramentos, ou seja, um sequenciamento de montagem. E isso torna-se mais rigoroso, mais pausado, refletido e composto na segunda metade do filme.
Pode-se dizer que a estrutura composicional se dobra aos sentimentos da personagem. Mas há outra leitura possível. É essa própria estrutura que também a aprisiona. Se Kaguya é a metáfora perfeita da animação, então seria essa tal de “linguagem cinematográfica” uma maneira de estancar também os seus movimentos. O enquadramento uma forma de comprimir seu corpo. Se há uma conjuntura mágica na primeira metade, em que natureza, linguagem e liberdade coabitam harmonicamente, agora não restam dúvidas de que é a linguagem que reina. Linguagem palacial, linguagem patriarcal, linguagem humana, linguagem cinematográfica. Kaguya é refém de linhas e formas como aquelas da gaiola de um passarinho.
No momento mais impressionante da animação desde o início de Princesa Mononoke, do seu amigo Hayao Miyazaki, Kaguya liberta-se dessas amarras. Encontrando-se sem saída, após ser oferecida em um banquete de debutante para a corte, ela explode retumbantemente. Destrói as paredes que são a sua prisão, abandona os tecidos finos que limitam os seus movimentos e avança tal qual um lobo solitário rumo à lua, que lhe atrai de maneira misteriosa.
A explosão de liberdade é tanta que nem as linhas que lhe definem pictoricamente resistem. A figura de Kaguya, tal qual definida pelos próprios animadores, não existe mais. Ela se torna um amontado de linhas de movimento que se agitam em puro êxtase e que dinamitam a própria linguagem a partir da qual foram formadas. Não há mais enquadramento, corte ou montagem, não há mais linguagem ou cinema: há só a criação do movimento, e, impressionantemente, mesmo que saibamos que foram pessoas que pensaram e criaram o que estamos vendo, o único artista daquele momento parece ser a própria Kaguya.
É uma pena que essa arte narrativa guarde outros destino para ela.
Encerraremos na próxima coluna.
Cauby Monteiro é cineclubista e cineasta.