O direito de celebrar o golpe
Quando o Poder Judiciário colabora com o negacionismo histórico sobre a ditadura militar no Brasil
Juliana Diniz
julianacdcampos@gmail.com
O Tribunal Regional Federal da 5ª Região decidiu que o governo federal pode realizar atos ou publicações alusivos a 31 de março de 1964 em tom comemorativo. A data é considerada o marco inicial da ditadura militar no Brasil, quando houve ruptura com a ordem democrática e a tomada de poder pelos quartéis. O processo em que a questão foi debatida começou no ano passado, quando a deputada Natália Bonavides (PT-RN) ajuizou uma ação popular para impedir qualquer celebração oficial do golpe como “movimento”. A primeira instância da Justiça Federal impediu as comemorações, mas a decisão foi alvo de recurso da Advocacia Geral da União. Ontem, quarta-feira, 17, o TRF da 5ª Região deu provimento ao recurso da AGU para permitir que o governo possa comemorar a data, que se aproxima.
A votação foi expressiva: quatro votos a um pelo acolhimento da tese da União. Segundo o argumento do governo, “o que a presente demanda procura fazer é negar a discussão sobre qualquer perspectiva da história do Brasil, o que seria um contrassenso em ambientes democráticos, visto que o Estado Democrático de Direito (art. 1º, caput, Constituição da República) pressupõe o pluralismo de ideais e projetos”. A AGU argumenta, portanto, que é antidemocrático proibir a celebração de um regime antidemocrático.
Trata-se de um argumento absurdamente frágil. Isso porque a possibilidade de reanalisar a história e ampliar as interpretações sobre um conjunto de acontecimentos é muito diferente de uma iniciativa governamental que nega e contradiz evidências históricas fartamente documentadas sobre a trajetória de um regime e o que ele fez. Que o governo federal possa celebrar a ruptura democrática é um escândalo: significa dar peso oficial à negação de que, à frente do governo, os militares torturaram, sequestraram, mataram e permaneceram no poder sem qualquer obediência aos ritos constitucionais. A liberdade de expressão e de interpretação da história obviamente não contempla a subversão da verdade factual para fins de propaganda política. E é isso que o governo federal almeja fazer: negar.
A decisão do TRF da 5ª Região é útil para demonstrar duas conclusões importantes. Ela mostra, em primeiro lugar, que é persistente em parte do Poder Judiciário brasileiro um ranço fortemente autoritário e colaboracionista, e que essa característica estrutural muitas vezes leva a aplicações distorcidas do direito para atender interesses ideológicos de grupos. A decisão também é útil para percebermos que, mais do que nunca, um debate aberto e profundo sobre o que seja a liberdade de expressão e sobre como muitas iniciativas autoritárias invocam essa garantia constitucional para subvertê-la: é a pretexto de proteger a liberdade que se defende ideias como a conveniência de fechar, com um soldado e um cabo, o Supremo Tribunal Federal. Se fossem um pouco mais cuidados, os desembargadores que proferiram o voto favorável à União poderiam ter estudado um tanto de história. O resultado certamente seria diferente.
Juliana Diniz é editora executiva do Bemdito, professora da UFC e doutora em Direito pela USP. Está no Instagram e Twitter.