Bemdito

O espólio terrivelmente evangélico de Bolsonaro

Possível ida de André Mendonça ao STF é herança ameaçadora que deixa ao Brasil o bolsonarismo
POR Juliana Diniz
Foto: Isaac Amorim / MJSP

“Os verdadeiros cristãos não estão dispostos, jamais, a matar por sua fé, mas estão sempre dispostos a morrer para garantir a liberdade de religião e culto. Que Deus nos abençoe e tenha piedade de nós”. Foi com essa declaração que André Mendonça, na qualidade de Advogado-Geral da União, defendeu a liberação de funcionamento de templos e igrejas no Estado de São Paulo em abril deste ano.

O agravamento da pandemia havia levado o governador João Dória a intensificar as medidas restritivas de circulação no estado mais populoso do Brasil e mais uma vez determinar a suspensão temporária das atividades religiosas. O decreto levou o PSD a propor ação para arguir a inconstitucionalidade da medida, no interesse de manter as atividades nos templos e igrejas. A ação foi relatada pelo ministro Gilmar Mendes e julgada pelo Supremo Tribunal Federal no sentido de contrário ao defendido pela Advocacia-Geral da União, para assegurar ao estado de são Paulo a autoridade para suspender a movimentação nos templos.

O comportamento de Mendonça no contexto do julgamento foi paradigmático. Ficou evidente para além de qualquer dúvida que o homem de confiança de Jair Bolsonaro estava mesmo disposto a se qualificar como o candidato “terrivelmente evangélico” apto a ser indicado pelo Presidente da República para ocupar a vaga a ser deixada pelo ministro Marco Aurélio de Mello em julho, deixando para trás o subserviente Procurador-Geral da República Augusto Aras, também interessado na vaga. Como salientou o colunista do jornal O Estado de São Paulo Vinícius do Valle, uma frase de Mendonça sintetiza bem sua visão sobre o papel da religião no confronto com a política: “não podemos nos curvar a qualquer poder que não seja o poder de Deus”.

André Mendonça ganhou a preferência por ser um nome confiável, alinhado à agenda e aos interesses de Bolsonaro, e por ostentar um currículo robusto em todos os quesitos: além de doutor em Direito, é teólogo e pastor evangélico. Por seu preparo e afabilidade dos modos, conta com apreço e simpatia do meio jurídico da capital federal, o que poderia reduzir as resistências que um nome mais radicalmente ideológico poderia suscitar. Relatos de bastidores dão conta de que alguns ministros da corte menos simpáticos ao bolsonarismo viram o nome “com algum alívio”. Afinal, nada é tão ruim que não possa piorar em terras governadas por Jair Bolsonaro: o primeiro indicado ao STF pelo governo, o ministro Kassio Nunes Marques, tem se mostrado fiel ao Executivo apesar das garantias de independência que o cargo lhe assegura, por isso nada assegura que o segundo indicado desempenhe suas funções com mais altivez e isenção.

A indicação de André Mendonça para o Supremo Tribunal Federal, confirmada oficialmente durante a semana pela presidência da república, merece atenção por seus efeitos de longo prazo. Ao contrário de outras ações e decisões governamentais, que podem vir a ser revertidas em caso de derrota eleitoral de quem as define, as indicações para a mais alta corte do país impactarão na visão de Direito do tribunal por décadas. Os indicados, uma vez aprovados pelo Senado Federal e investidos na função, são vitalícios na função, só deixando o posto a pedido, por aposentadoria, morte ou, em casos absolutamente excepcionais, impeachment. 

O desenho político brasileiro optou por um modelo que prima pela estabilidade da composição do tribunal constitucional do país, como acontece em outros países com tradição constitucional forte. Embora haja críticas importantes sobre essa escolha fundamental do constituinte, não podemos dizer que esse fator seja, por si só, a causa maior das inquietações sobre a indicação de André Mendonça.  

 O desconforto se deve à aparente disposição do indicado em tensionar os limites da laicidade, colocando a religião como parâmetro para fundamentar suas argumentações enquanto jurista e, eventualmente, no futuro, suas decisões como juiz. Esse o interesse do grupo político de Jair Bolsonaro na indicação de um nome “terrivelmente evangélico”, o de influenciar a formação da maioria do tribunal nas questões que digam respeito a costumes. São temas como: direitos reprodutivos das mulheres, políticas afirmativas em prol de minorias, reconhecimento de direitos civis a populações minoritárias, políticas educacionais, só para citar alguns assuntos.

Se vivermos para testemunhar um ministro do Supremo Tribunal Federal invocar a Bíblia como razão primordial de decidir, já teremos sido derrotados no projeto de consolidação de um estado de direito democrático no Brasil, ainda que a voz desse ministro seja isolada ou minoritária. Por isso, é preciso estar alerta e levantar barreiras de contenção contra as influências sempre destrutivas que a primazia da religião exerce sobre a política democrática. Há uma resistência forte ao nome de André Mendonça no Senado Federal – é preciso que essa resistência seja compartilhada também pela sociedade: os limites são claros e os cristão sabem bem disso. Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.

Juliana Diniz

Editora executiva do Bemdito. É professora do curso de Direito da UFC e Doutora em Direito pela USP, além de escritora. Publicou, entre outras obras, o romance Memória dos Ossos.