Bemdito

O Estado contra a sociedade

Algumas palavras para atravessar tempos sombrios
POR Leonardo Araújo
Markus Spiske

Algumas palavras para atravessar tempos sombrios

Leonardo Araújo
araujovleonardo@gmail.com

Distanciando-se de interpretações que consideravam a ausência do Estado um elemento próprio às formações sociais pouco desenvolvidas, em A Sociedade contra o Estado, Pierre Clastres vai mostrar a maneira pela qual os povos indígenas amazônicos recusavam ativamente essa estrutura política como forma de gestão da alteridade. Não desconhecendo o poder em sua feição coercitiva e transcendental, essas sociedades “primitivas” a rejeitavam por considerá-la uma ameaça à própria existência. Sendo assim, o poder nelas aparecia de maneira negativada e, tão logo se impunha, era controlado por dispositivos de sociabilidade constitutivos de sua cultura – como relações de parentesco exogâmicas e economia particular de troca e reciprocidade.

Nesse sentido, marcariam uma experiência social diametralmente oposta àquelas presentes na contemporaneidade, em que o Estado se constitui e atua contra a sociedade, por meio de uma soberania exercida como poder de matar. Emaranhado ao racismo, ao classismo e ao heteropatriarcado, esse Estado fabricará mundos de morte e tecnologias de destruição, que operam como a negação do direito básico à vida. É o que o Achille Mbembe chamará de “necropolítica”.

Decorrência da escravidão, esse regime está em curso há muitos séculos no Brasil, atualizando-se na segregação de parte da população em territórios periféricos, onde a legalidade é suspensa e os corpos negros tombam, cotidianamente, assassinados direta ou indiretamente pelo Estado. A consolidação do país como epicentro da pandemia e a marca diária de mais de dois mil mortos pelo novo coronavírus apenas tornaram esse projeto explícito àqueles que até então não eram alvo. Se não estamos no mesmo barco, como dão a ver a maior incidência de vítimas nos bairros de menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), é verdade que o ar pútrido da morte avança rapidamente com o espalhamento do vírus.

O que fazer diante disso? Em A gente combinamos de não morrer (2014), a escritora Conceição Evaristo parece nos dar uma pista. No conto, ela traz a história de Dorvi, menino de favela que cresce em meio a tiroteios, brincando com “balas nos dedos gatilhos” (p. 68). Certo dia, escondido dos projéteis que cruzam o ar com velocidade estonteante, ele grita, a plenos pulmões, o juramento feito em uníssono com os amigos, o mesmo que dá título à história: “A gente combinamos de não morrer!”. Quando a vida é despida de todo sentido, confundida a um “pó branco qualquer” (p. 69), para depois desaparecer em redemoinho, permanecer vivo assume uma dimensão inelutavelmente política.

Retornando a Clastres, na mesma obra ele discorre sobre a organização sociopolítica ameríndia, a qual se dava por meio da formação de uma totalidade orgânica, enleada por relações profundas de interdependência e solidariedade. Em igual sentido, utilizado como tecnologia de sobrevivência, o juramento feito pelos garotos faz nascer neles o mesmo “espírito de corpo” identificado pelo etnólogo, pelo qual constituem uma só carne, unida pelos mesmos fios vitais. Ou como diria Mateus Fazeno Rock em Trilha Sonora Para o Fim do Mundo, “Se meus amigos tão morrendo eu vou morrendo junto”.

A melhor chance de atravessarmos (vivos) esses tempos sombrios é, inspirado em Dorvi, em Mateus e nos povos amazônicos, fazer um pacto de sobrevivência que não seja uma afirmação genérica da vida, isto é, que não ignore as marcas diferencialmente inscritas na materialidade do corpo, impedindo que certas existências sejam consideradas mais importantes que outras.

Leonardo Araújo é psicanalista e pesquisador em antropologia/sociologia. Está no Instagram.

Leonardo Araújo

Psicanalista, é mestre em comunicação e doutor em sociologia, com pesquisa em corpo, arte e política.