Bemdito

O instante na ponta da agulha

Uma coleção de fotografias para alegrar os dias
POR Iana Soares

Uma coleção de fotografias para alegrar os dias

Iana Soares
ianascm@gmail.com

Quando li A Câmara Clara e vi como Roland Barthes perseguia a imagem da mãe, sem jamais mostrá-la, me aproximei do mistério e da beleza que é olhar qualquer fotografia. A mãe era dele, mas eu estava ali tentando encostar na emoção que descrevia. Ele organizava cada palavra para reconhecer, de alguma forma, que era incapaz de traduzir o instante. Guardei, dele, a ideia de punctum: algo que sai da imagem para morar no observador, como uma flecha. Aquilo que nos afeta antes mesmo de arranjarmos qualquer explicação. Nem sempre é evidente.

Agora, se faço um esforço, consigo enxergar meus avós na frente de um jarro de cerâmica. Dentro, uma planta artificial que parecia uma pena carnavalesca encostava nos dois e por pouco não tirava o protagonismo do casal. Ao lado, uma estante com algumas bebidas, uma vitrola e um prato com as bodas de prata. Não sei se inventei ou se estava tudo assim, exatamente. Embora parecesse um dia banal, houve uma cerimônia para a criação do retrato. Escolheram a roupa, o lugar, a pose. Sem sorrisos, tinham apenas um olhar que se adiantava ao tempo. Você também pode ter guardado uma foto assim.

Lembrei dessa cena pelo desejo de narrar outras recentes. Pelo Whatsapp, Mariana me enviou uma foto de Socorro, sua mãe, acompanhada da legenda “modelando a caminho da vacina”. Em frente a um portão preto, sorri e veste blusa estampada em tons de verdes e azuis, flores miúdas, calça preta e usa um par de brincos de bolinhas. Há um ano atrás, ela costurou as primeiras máscaras que usei. Algumas horas depois, chegou outra imagem. Socorro está séria, encara o braço direito e vê uma seringa derramar a primeira dose da vacina contra o coronavírus. Na sequência, recebi também a coreografia da comemoração com o Zé Gotinha e uma enfermeira do Sistema Único de Saúde (SUS).

Maria Neuma, minha avó, colocou um gigolé vermelho para receber as enfermeiras em casa. Joana Ilza, a outra avó, olhou para o teto, ou para o céu, enquanto esperava a picada. Everton, pai de outra Mariana, fez amizade com Joélio, que enfiou a agulha ali no carro mesmo e depois abriu um sorriso. Dois dias depois, Maria Tereza, a mãe, recebeu sua dose de Coronavac. Yolanda, na primeira e na segunda doses, levou um cartaz com as palavras “Bolsonaro genocida”. Em Maceió, a doutora Mariana, neta dela e filha da Vanessa, também se imunizou. Marvioli vestiu uma camisa azul na qual é possível ler “Eu defendo o SUS”. A Teresa do Cafundó, mãe do Bruno, vestiu uma blusinha rosa, com bordado, e não reclamou. Soube de tudo isso pelas fotografias que vi nas redes sociais.

Vi, ainda, o Mauri e o Celso. Os pais e os tios da Carolina, da família Nascimento: Pedoca, Lulu, Socorrinha, Almeida, Adaluzia, Alice, Ceiça, D’Arc, Airton. O Cláudio da Natália. O Ednard da Viviane, a avó Janilde e as tias Dione e Denisia. Os pais das Saras, Maia e Oliveira, e os da Jéssica, em Fortaleza e Brasília. As avós da Samaisa. A Maria Lúcia e o Luiz da Tatiana. Os avós da Camila e do Jonas. A Emília e o José Arlindo, pais da Luana. A mãe da Domitila. Cada retrato é singular e, pelo paradoxo que mora em qualquer imagem, afirmo também que são todos iguais. Alguém que se coloca diante de uma câmera quer provar que um dia existiu. Nestes tempos, mostrar que conseguiu ser vacinado é uma forma de sonhar com o futuro e de afirmar o óbvio: cada vida importa.

Ainda não tenho os retratos da minha mãe e do meu pai imunizados, mas espero guardá-los em breve. Também tenho curiosidade para saber o rosto que terei no dia em que for vacinada. Quero adivinhar o punctum. De alguma forma, vamos sobreviver ao tempo, na fotografia e nos olhos daqueles que um dia nos amaram.

Iana Soares é jornalista e fotógrafa. Está no Instagram.

Desejo que este mosaico seja mais uma oportunidade de agradecer aos profissionais de saúde, de defender e afirmar a importância do Sistema Único de Saúde e de denunciar práticas genocidas do presidente Jair Bolsonaro. No dia 6 de abril, 4.195 brasileiros morreram infectados pela Covid-19. Há muitas famílias tristes e desamparadas.

Iana Soares

Jornalista, fotógrafa e professora, tem mestrado em Criação Artística Contemporânea pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Barcelona e atualmente coordena o Programa de Fotopoéticas da Escola Porto Iracema das Artes.