O machismo político televisionado
Polêmica com bancada feminina na CPI da Covid mostra camadas perversas de exclusão das mulheres dos espaços centrais de poder
Monalisa Soares
monalisaslopes@gmail.com
Analista de política que sou, com interesse particular em conjuntura, me dispus a abordar diversos assuntos nesta coluna. Em se tratando da política brasileira nos últimos anos, não faltam temas relevantes para discussão. Como bem expressa algum meme que circula nas redes: “de tédio ninguém morre no Brasil”. Considerando o terror causado pelos acontecimentos recentes, até creio que o marasmo político seria uma boa opção durante algum tempo.
Faço esse preâmbulo para justificar, digamos assim, minha reiterada opção nos últimos tempos pela discussão de gênero e política. Ainda que haja muitos aspectos relevantes da conjuntura política se desdobrando atualmente, essa dimensão particular tem capturado minha atenção. É evidente que os desafios enfrentados pelas mulheres no campo político não são episódios conjunturais, mas sim engendram a própria constituição desigual da organização deste espaço social.
Nesta semana, mais uma vez, pudemos testemunhar uma evidência grotesca de como ainda existem, nos espaços institucionais, atores dispostos a vocalizar discursos refratários à participação e ao destaque das mulheres na política. Refiro-me ao questionamento que alguns senadores fizeram à participação da bancada feminina na CPI da Covid.
É relevante destacarmos que nenhum dos partidos indicou sequer uma senadora para participação entre os 11 membros titulares ou entre os 7 suplentes. A CPI da Covid, um dos espaços de maior visibilidade política hoje, ficou a cargo exclusivamente dos senadores. Diante do fato, a bancada feminina no Senado reivindicou a participação com direito à fala para realizar questionamentos aos depoentes nas listas de titulares e suplentes, com o compromisso de que as senadoras (governistas e de oposição) se revezariam a fim de que todas pudessem participar. A demanda foi apresentada no dia 4 de maio, primeiro dia de depoimentos, e a presidência da CPI encaminhou positivamente o pleito da bancada.
No dia seguinte, durante o depoimento do ex-ministro Nelson Teich, a primeira representante da bancada feminina a falar foi a senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA). Ela congratulou a presidência da comissão pela decisão de incluir a representação feminina nas listas de questionamentos aos depoentes. Em meio à arguição da senadora Eliziane Gama, o senador Ciro Nogueira (PP-PI) pôs em dúvida a inclusão das senadoras no rol da lista de prioridades para inquirição. Usando a retórica de que “nenhum outro partido respeita mais o papel das mulheres do que o meu”, Ciro Nogueira justificou sua posição contrária à inclusão das senadoras atribuindo a responsabilidade pela ausência delas às lideranças partidárias que não as indicaram para constituir a CPI. Usou ainda o argumento de que a situação não era prevista no regimento da Casa Legislativa.
O discurso do senador é claramente diversionista. Em vez de tratar do tema central, a necessária representação política das mulheres nos espaços centrais de poder e visibilidade, Ciro Nogueira desvia o debate, querendo retirar o conteúdo de gênero, justificando sua posição em regras regimentais.
É fato que há o problema precedente, no qual partidos, inclusive o PP do próprio Ciro Nogueira, não indicaram nenhuma mulher para compor a CPI, seja como titular ou suplente. Todavia, isso não pode ser motivo para que a representação reivindicada pela bancada feminina, e coletivamente consensuada por vários membros da comissão, não possa existir pelo menos na participação nos questionamentos. Ou seja, que as senadoras possam ao menos falar na CPI junto aos demais membros, já que não terão direito a apresentar requerimentos e votar. A mobilização do regimento da Casa como argumento para não aceitar uma solução que inclua as senadoras revela-nos outras camadas perversas do processo de exclusão das mulheres dos espaços relevantes de poder político.
O episódio narrado serve-nos para compreendermos as barreiras à atuação das mulheres mesmo quando conseguem ingressar em espaços institucionais do poder político. Aqui compreendemos de modo patente que, ainda que conquistem mandatos, as mulheres em geral têm uma “inserção marginal” no campo político, para usar os termos de Flávia Biroli e Luis Felipe Miguel. Isso significa dizer que, num espaço hierarquizado como o Parlamento, dificilmente vemos mulheres ocupando os postos centrais com mais poder e visibilidade, vide este exemplo da CPI da Covid. Exemplos nesse sentido são abundantes, basta observar, ao longo do tempo, a composição das Mesas Diretoras, o perfil das Lideranças partidárias, de governo e de oposição, etc.
Outro efeito da desigualdade e que resulta dessa hierarquização no campo político é o baixo reconhecimento e atribuição de relevância aos temas e posições ocupados pelas mulheres. Considerando a dificuldade de as mulheres acessarem outras posições no campo político, essa lógica reforça o ciclo vicioso que garante prestígio e visibilidade às trajetórias políticas dos homens.
Considerando tais reflexões, entendemos a importância de tomarmos o debate sobre a participação política das mulheres em diversos níveis. Afinal, não basta discutirmos as condições de ingresso, promovendo, aprimorando e fiscalizando políticas de inclusão. É necessária a problematização das condições desiguais de distribuição de poder dentro do campo político e dos persistentes padrões que denegam às mulheres posições centrais de poder e visibilidade.
Monalisa Soares é professora da UFC e pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia (LEPEM) com ênfase em campanhas eleitorais, gênero e análise de conjuntura. Está no Instagram.