O papel das universidades no combate às alterações climáticas
Participei de um evento na última semana deste mês de novembro, no Porto (Portugal), que se propôs a discutir assuntos diversos: de mobilidade à tecnologia, de saúde digital às oportunidades no setor do espaço, de educação às mudanças climáticas.
Foi a quarta edição do Tomorrow Summit, organizado pela Federação Acadêmica da Universidade do Porto, com apoio do governo federal. Estava particularmente interessada em ouvir o ministro do Ambiente e da Ação Climática de Portugal, João Pedro Matos Fernandes, em debate sobre os desafios das alterações climáticas.
Entre as palestras em que estive, duas falas me chamaram atenção. Ambas, de figuras do setor empresarial. A primeira foi uma declaração do coordenador de Relações Públicas de uma das maiores marcas do setor automobilístico mundial.
Ao apresentar um veículo movido a hidrogênio (ao custo de 67.000€, ou R$ 425.000), afirmou que a empresa “está fazendo a sua parte” para combater as mudanças climáticas e que agora “falta à sociedade fazer a dela”.
A segunda declaração veio de um engenheiro mecânico, que introduziu a fala dizendo que a questão das alterações climáticas é uma “trend“, em inglês mesmo.
É verdade que a agenda climática entrou com força no debate público mundial nos últimos anos, o que poderia se configurar uma “tendência”. O palestrante, no entanto, tentava vender um produto no momento em que usou o termo: por “trend”, referia-se à oportunidade de lucro representada pela crise do clima.
É evidente que o mercado responde às demandas da sociedade, que, cada vez mais, tem pressionado por soluções ecologicamente responsáveis. O diabo, porém, está nos detalhes.
Não deixa de ser preocupante a apropriação, por parte do setor empresarial, de uma linguagem persuasiva que traz nas entrelinhas a ideia de que as soluções para a crise climática estão necessariamente dentro do atual modelo econômico mundial.
A obrigatoriedade de lucrar com a crise climática criará novos problemas – e assim, o ciclo de tragédias criadas e supostamente solucionadas dentro do próprio sistema econômico seguirá se perpetuando.
Sugiro deixarmos um pouco de lado a ideia de que resolveremos a crise climática dentro do modelo econômico atual e apelo para a seguinte solução: o engajamento urgente das universidades. Enquanto o envolvimento empresarial na discussão climática é norteado pelo lucro – e continuará sendo, posto que essa é a razão de ser do nosso modelo econômico -, o objetivo da universidade é a construção do conhecimento científico.
Se a ciência tem de ser posta a serviço da sociedade para a resolução de problemas e as alterações climáticas são a crise do século, por que não voltar as atenções – e os investimentos públicos – para o que as universidades podem fazer nesse combate?
E elas podem fazer muito mais do que já fazem: não apenas por meio de pesquisa e inovação, como já ocorre há décadas, mas principalmente por mudanças estruturantes nas instituições universitárias, nos currículos de base e na atuação docente, como veremos a seguir.
Do ministro ao doutor, um só apelo
Presente no mesmo evento que eu, o ministro do Ambiente e da Ação Climática de Portugal, João Pedro Matos Fernandes, disse: “É preciso estar nas universidades antes de estar nas empresas”. Concordo, mas acrescento que as atuações devem ser complementares, pois cabe ao governo repensar em paralelo os subsídios às empresas, sobretudo às produtoras de combustíveis fósseis.
João Pedro Matos também tem razão quando diz que as universidades ainda não incorporaram aos currículos questões compatíveis com um mundo sob emergência climática. O próprio ministro afirmou que, por exemplo, no curso de Engenharia Civil (no qual se formou), não se ensina sobre eficiência material. Mas enfatizou que “já não é aceitável” construir hoje um edifício que, daqui a 50 anos, impossibilite a reutilização integral dos componentes, como estruturas e peças, em uma eventual desmontagem futura.
“É preciso ensinar de outra forma. Nunca ninguém pensou em fazer de outra forma. Mas há muita coisa a mudar”, declarou. Sugiro então ao senhor ministro do Ambiente e da Ação Climática que atue em conjunto com o ministro da Educação para a criação de programas de reforma do currículo de base do Ensino Superior.
O envolvimento das universidades, no entanto, precisará ir muito além da modernização curricular. Os tempos pedem ousadia e criatividade, e não há espaço mais preparado para essa missão do que o ambiente universitário.
Outra humilde sugestão que faço ao ministro, mas também ao leitor, é: leia a pesquisa do doutor em Ecologia, Aaron Thierry, um dos 21 cientistas presos na COP-26, em Glasgow.
Publicado em maio deste ano, o estudo defende que os pesquisadores e professores precisam se engajar ativamente na questão climática, para além dos estudos científicos já desenvolvidos nos bancos da universidade.
“Das publicações às ações públicas: o papel das universidades na facilitação da defesa acadêmica e do ativismo no clima e na emergência ecológica” é um chamado ao ativismo, tendência entre muitos cientistas do clima. Os quatro autores – entre eles, Thierry – defendem que milhares de universidades em todo o mundo já fizeram declarações de emergência climática, mas concluem que o Ensino Superior “não está à altura do desafio coletivo”, por não encarar as advertências científicas com a urgência proporcional que seria necessária.
Embora os pesquisadores reconheçam que as universidades já têm dado, nos últimos anos, maior enfoque à sustentabilidade na investigação e no ensino, além do cuidado com a própria pegada ecológica enquanto instituição – ao aderir à transição energética nos edifícios, por exemplo -, a conclusão é que tais iniciativas não são suficientes para dar conta das transformações que a sociedade e a economia precisam.
“Sugerimos que os acadêmicos passem das publicações às ações públicas e se empenhem na advocacia e no ativismo para afetar mudanças urgentes e transformacionais”, defendem os pesquisadores.
Para ajudar a superar barreiras ao envolvimento em advocacia que os acadêmicos enfrentam, os autores do trabalho propõem uma série de ações que as universidades podem adotar, como:
a) O reconhecimento explícito da advocacia como parte do trabalho do corpo acadêmico, alterando modelos de atribuição de trabalho, facilitando momentos sabáticos de investigação engajada, alterando políticas de contratação e promoção, e proporcionando formação para aumentar a eficácia do engajamento;
b) As universidades devem defender o direito dos acadêmicos de se envolverem em protestos e recuar contra as ameaças emergentes à liberdade acadêmica.
Do ponto de vista dos pesquisadores, essas ações poderiam “reforçar uma rica tradição de protesto acadêmico” e aumentariam, inclusive, a contribuição das universidades para o bem público, não apenas na área de sustentabilidade, mas também de justiça social, racismo e saúde pública.
Evidentemente, o contexto no qual Thierry e os colegas pesquisadores desenvolveram o estudo é o Norte Global – em particular, uma perspectiva eurocêntrica.
Entretanto, quanto mais estudo o papel da Educação e da Comunicação nas alterações climáticas, e me aproximo de cientistas do mundo inteiro que têm se especializado em centenas de perspectivas em torno da crise do clima, mais me convenço de que a solução não é tão instrumental ou comercial quanto os setores empresarial e tecnológico fazem parecer, nem tão óbvia ou cristalina quanto os cientistas gostariam.
Mas talvez comece, necessariamente, pelo ativismo de cada um de nós e pela pressão coletiva, como o envolvimento dos acadêmicos e das instituições universitárias.
Tal como insinuou o senhor ministro do Ambiente e da Ação Climática, a pressão para operar as mudanças de paradigma da questão climática precisará vir antes de dentro das universidades do que das estruturas de poder que lucram com as crises.