Bemdito

O que Kant e Suassuna têm a dizer sobre olhar de peixe morto

É impossível escapar do olhar (e do selfie) do outro
POR Cláudio Sena

A nova inspiração das poses dos selfies veio do fundo dos mares. Ou dos refrigeradores. Deu do G1: “O olhar de peixe morto chegou para substituir a cara de pato nas selfies”. Coitado de quem, só agora, aprendeu a reproduzir o bico da ave, pois este estaria, segundo fonte segura do podcast Semana Pop do último sábado 14 de maio, ultrapassado. 

“Era só apontar uma câmera e pronto. Todo mundo sugava a bochecha, fazia biquinho e inclinava a cabeça. Essa pose foi patrocinada pelas irmãs Kardashian.”, afirmou a apresentadora do programa. 

Aprendeu? Pois já era. Não serve mais. Agora a onda é outra. 

“Hoje tem uma expressão diferente na cara das famosas, com uma cara mais debochada e conectada com a era mais pessimista. É o olhar de peixe morto. Tem que inflar a boca, mas de um jeito que não seja tão forçado. Revirar os olhos e tentar fazer uma expressão meio vazia, meio insatisfeita, meio irônica.”.

A considerar nossos tempos de crise, talvez seja até mais fácil de executar essa última pose. 

Como percebe-se com a notícia e com o interesse despertado na audiência, não são somente artistas e filósofos que investigam as trends de cunho imagético. De Luís XIV, o Rei Sol, ao digital influencer de moda, as imagens produzidas envolvem esforços imensos de quem realiza essas tentativas de reprodução do real. Se possível, um belíssimo real. 

Sendo o belo, na noção clássica, retomando Ariano Suassuna em sua obra Iniciação à Estética, “caracterizado pela harmonia, pelo senso de medida, pela fruição serena e tranquila”, tais poses fotográficas não se apresentariam exatamente como representação da beleza. 

O bico de pato, já quase rupestre em termos de tempo cronológico das redes sociais, e atualíssimo olho de peixe morto, ambos figurariam como representantes da estética. Não a estética relativa à escolástica clássica, mas emergida na era digital. 

Na visão pós-kantiana sugerida pela hipótese de Suassuna, trata-se-ia de algo que não se coloca compromissado com a categoria do belo. Nem o mais bonito dos cangulos ou o mais simétrico dos bicos de ganso, ambos reproduzidos pelas feições humanas, atingiram a categoria do belo unânime. 

Ok até aqui. Mas há algo de sublime, algo a ser apreciado nestes tipos de fotografia. Permita-me avançar na perspectiva do autor pernambucano e também na de Immanuel Kant. 

O sublime para Kant, retomado por Suassuna, seria “essa desarmonia apresentada sob forma sensível… um sentimento estético misturado de sensações agradáveis e de terror, e experimentado, portanto, contra o interesse dos sentidos”, enquanto o belo “era um sensação desinteressada, serena e pura”.

Considerando que, por mais canonicamente bonito ou bonita uma pessoa seja considerada, a simulação do olhar de um peixe desfalecido ou de um ave simpática carregaria não exatamente o belo como categoria, mas talvez um possível sublime. 

Embora diferentes, o belo e o sublime colocam a experiência do contemplador em questão. Ambos existiriam para serem “apreciados”. O internauta, mesmo aquele que passa sem curtir, amando ou odiando um bico de pato feito de carne humana e um olho de peixe morto nos rosto de um indivíduo vivo, faria parte do jogo de sentidos. Portanto, não há como escapar. Frequentando espaços de convivência digitalizados, seremos afetados por caras, bocas e olhos dos outros e, talvez, nossos.

Cláudio Sena

Doutor em sociologia, professor, pesquisador e publicitário, é mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade do Porto.