Bemdito

Três minutos sustentando o olhar em (ou de) alguém

A descoberta das linhas que definem o rosto do outro também fala de nós mesmos
POR Alice Dote

Nathalia indicou as duplas. Alice e Verônica.

Três minutos para que uma desenhasse a outra.

Todas as câmeras ligadas preenchiam o xadrez de retângulos na tela. Como se tornou difícil sustentar, mesmo que brevemente, o olhar em alguém. O olhar de alguém. As imagens na tela do celular, a própria imagem refletida na tela do computador: irresistíveis. Quase uma obsessão.

Essa perseguição de nossos próprios rostos, muitas e muitas horas por dia encarando-se refletidos na tela, parece ser algo sem precedentes em nossas vidas: com algum espanto, podemos constatar que o excesso de exposição que já vivíamos ainda não constituía o ápice da tirania da visibilidade de uma sociedade pornográfica, como se refere Byung-Chul Han, em Sociedade da Transparência.

Não nos assistíamos enquanto discutíamos propostas de trabalho, debatíamos teorias, tentávamos pronunciar uma frase em um novo idioma, fazíamos abdominais e pulávamos corda, dançávamos. Ou, ao menos, nos assistir enquanto vivíamos — o que difere de nos filmar enquanto vivíamos — não era, ainda, praticamente incontornável. De repente, nossos rostos invadem as telas, oferecendo-nos ângulos, texturas, linhas, nuances de nós mesmos que, às vezes, despercebemos. Para muitos (muitas) de nós, o rosto, como um ímã, concentra a força de atração das falhas, inexistentes defeitos agigantados. Para muitos (muitas) de nós, é impossível encará-los. Câmeras desligadas.

Agora, identifico os traços da minha concentração. Percebo os olhos apertados — devem ser os mesmos que faziam, ao longo dos anos, algum professor me perguntar, eu, sempre silenciosa em sala de aula, se gostaria de falar algo. Entre eles, o par de rugas que se aprofunda a qualquer dúvida ou descoberta. Ora o bico sério de lábios franzidos, ora o queixo enrugado a deixar pender um lábio pensativo. Rosto que deixo surgir só quando do rosto me esqueço. Será que conseguimos fugir do nosso olhar?

A dois mil quinhentos e oitenta e dois quilômetros de distância, Verônica preenchia todas as treze polegadas da tela do notebook. Nos primeiros segundos em que meu olhar nela se deteve, o papel — ela no papel — deixou de importar. O mundo todo era ela na tela.

Eu quis chorar.

O mundo todo era ela na tela e aquela experiência singular de vê-la me vendo. Foi como um susto. Esqueci-me de mim. Durante três minutos, eu, que também estava sendo percorrida com o olhar, esqueci-me do meu rosto.

Ela e sua presença ensolarada. Nem o desenho, ou se nele ela se encontraria, importava. Eu olhava para ela: e ela, me olhando, encolhia os olhos, franzia a testa, dançava a cabeça em um vai e vem entre o papel e a tela, da qual, vez ou outra, se aproximava — não para que eu a visse, mas para me ver. Ela expandia os olhos claros sob os grandes óculos de armação escura, para me alcançar, me descerrar, me descobrir. Seus olhos revelavam o gesto de ver. Então é esse o rosto de um rosto que persegue. Então são essas as linhas de um tal deslocamento pelo qual nos instalamos em quem desenhamos.

Verônica sustentou, durante três minutos, não uma pose, mas um olhar.

Me comoveu tentar deter algo dela assim, nessa atenção deliberada, disposta, dedicada, enquanto ela também tentava chegar até mim. Senti-me algo como uma voyeuse simultaneamente ausente e presente, também toda disponível, nada evasiva ao toque do que toca com o olhar. Eu estaria, como ela, desarmada de minha própria imagem, distraída de mim, suscetível ao seu olhar? E, simultaneamente, o desafiando. Verônica se deixava entregue porque me parecia esquecida de si enquanto concentrada em mim, e, esquecida de si, parecia também esquecer que eu a desenhava. À revelia da minha tentativa de segurar um tantinho dela em uma linha, ela, talvez apenas por seguir existindo, brincava com a ambição da visão nesse espaço de atração e tensão entre quem vê e a coisa vista. 

Nós permanecíamos ali, sustentando a presença uma da outra, e se alargava minha esperança nos segundos.

De algum modo, talvez eu tenha conseguido olhá-la e me deixar olhar durante esses três rápidos e longos minutos porque a mirada atravessava a tela. Seria diferente se frente a frente, à distância de um braço esticado, estivéssemos? Será que consigo segurar meus olhos em olhos que não os meus? 

No domingo, três dias antes, havia desenhado meu companheiro. “Fica parado”, eu pedi. “Eu tô parado!”. Eu concentrei-me nas linhas do rosto que tanto conheço e que, a cada vez que tento riscar, descubro desconhecer. 

Ele concentrou-se em não olhar para mim. Rimos por desconforto e, talvez, alguma excitação infantil. O medo de mirar seus olhos — ou de não conseguir fazê-lo —, enquanto ele me percorria, levou meus olhos para uma reentrância do forro de gesso da nossa sala. Minutos não cronometrados de olhar fixo na pequena lâmpada que há muito queimou e nunca foi trocada. Seu desenho, eu uma linha em vermelho sobre o papel pólen, traz os olhos desviantes.

Alice Dote

Pesquisadora e artista visual, é mestre em Sociologia e co-criadora do coletivo Narrativas Possíveis, com pesquisa e atuação em cidade, imagem e artes urbanas.