O satanismo do Direito
Satânico é quem acusa e quem esquece o mistério da verdadeira ficção num processo contra as bruxas: o Direito
Ricardo Evandro S. Martins
ricardo-evandro@hotmail.com
Em um dos seus trabalhos para a recém criada rádio alemã, entre os anos 20 e 30 do século passado, o filósofo alemão Walter Benjamin fala ao público infanto-juvenil da época sobre um episódio histórico bastante conhecido: o processo contra as bruxas. Benjamin lembra os seus ouvintes de que talvez o primeiro contato que eles tiveram com a figura da bruxa foi por meio de contos de fadas, como a de João e Maria. Como se sabe, estes contos foram compilados pelos irmãos Grimm, dentro do contexto do romantismo alemão. Mas o ponto onde Benjamin quer chegar é o modo como, deste senso comum e imaginário sobre quem são as bruxas, chegou-se às perseguições no final da Idade Média – sobretudo contra mulheres. Além disto, Benjamin também quer mostrar como, posteriormente, o direito tentou lidar com a máquina julgadora e caluniadora que as perseguições se tornaram.
A bruxaria, feitiçaria, e a capacidade de fazer mal a alguém, não eram uma preocupação entre os cristãos até certo momento do medievo. Nas Confissões (397 d.C) de Santo Agostinho, a maldade nem realidade possuía – “procurei o que era a maldade e não encontrei substância, mas sim uma perversão da vontade desviada da substância suprema”. Mas talvez a partir das Cruzadas, diz Benjamin, o medo de práticas mágicas se proliferou por toda Europa. Mesmo com a existência de avançados estudos lógicos e científicos, especialmente de influência árabe, à frente da ciência europeia, a chamada “magia negra” teria também sido trazida do Oriente e passara a ser objeto de caça. Sobre a origem do pânico contra a bruxaria e seus e suas praticantes, em O calibã e a bruxa (2004), a historiadora italiana Silvia Federici tem outra hipótese: “(…) por detrás da caça às bruxas, esteve a expansão do capitalismo rural, que incluiu a abolição de direitos consuetudinários e a primeira onda de inflação na Europa moderna”.
Tendo sido por motivos espirituais, científicos ou econômicos, os processos contra bruxaria poderiam se iniciar pelo mais singelo motivo. Em A caça às bruxas: na Europa no limiar da Idade Moderna (1987), Brian Levack diz que “na maioria dos casos o catalisador era um infortúnio pessoal, interpretado por alguém e seus vizinhos como ato de magia malévola (…) a perda de um animal de fazenda, a impotência sexual ou o fracasso amoroso (…) levavam a vítima do infortúnio, num esforço para explicar o ocorrido e se vingar do suposto malfeitor, a atribuir o dano à bruxarias e a levar a bruxa à justiça”. Sobre a “justiça”, Benjamin lembra que tanto a jurisdição religiosa dos bispos, quanto a jurisdição secular, julgavam as acusações de bruxaria. Aliás, o antigo direito eclesiástico nem sequer tratava de condenação de bruxas à fogueira. Foi na busca de penas e métodos processuais mais violentos que o crime de bruxaria acabou encontrando no direito costumeiro do principado da Saxônia o caminho para se considerar tais delitos como crimen exceptum (crime de exceção).
Sendo “excepcionais”, os acusados de bruxaria eram submetidos a torturas, sob o pressuposto de, no caso das mulheres, já haver de partida o pré-julgamento de que elas teriam “pacto com o demônio”. E ainda que se calassem quando inquiridas, alegava-se “mordaça do diabo”, como sendo o verdadeiro impeditivo de testemunho, ou invoca-se o “teste de lágrimas”, quando chorar seria a medida final para se saber de sua inocência. Contudo, este estado de exceção das coisas em causa processual sofreram uma contestação importante. Segundo Benjamin, príncipes, médicos e os “doutores da lei”, admitiram “que já não se poderia confiar mais em calúnias ou confissões obtidas sob tortura”.
Então uma importante voz se fez escutar, a do jesuíta Friedrich von Spee, ao publicar seu tratado contra a verdadeira máquina de morte judicial que ocorria há séculos na Europa – chegando à além-mar, nos territórios colonizados a partir do século XVI. Com o seu Cautio criminalis (1634), ainda que reconhecendo a existência de bruxaria – talvez como recurso retórico para não gerar suspeitas contra si mesmo –, Spee defendia que era preciso punir os caluniadores, que um prisioneiro deveria ter advogado em sua causa, e à pergunta sobre o que poderia a tortura conseguir, o seguidor de Santo Inácio de Loyola disse: “nada”.
Em um texto sobre o caráter “satânico” que talvez Benjamin estivesse confessando, seu grande amigo, o teólogo cabalístico alemão Gershom Scholem, lembra-nos que Satan significa o “acusador”, em hebraico. Assim, “satânico” pode ser não apenas uma característica das acusadas de bruxaria, devido ao suposto pacto que possuem com Satanás. O Direito, o processo e seu aparato judicial, podem ser também ser “satânicos” porque são máquinas acusadoras. Mas não apenas o Direito medieval e sua obstinação por caçar bruxas, torturá-las, produzir confissão e incendiá-las, seriam “satânicos”. Mesmo a perspectiva mais moderna sobre o direito conservaria, ainda sim, e por natureza, o seu caráter acusador, julgador e punitivo. E a narrativa radiofônica de Benjamin pode estar relacionada com o papel pedagógico de se fazer tal crítica ao Direito, mesmo ao moderno processo jurídico e do estado de direito que pode lhe fundamentar. Por mais que se trate de um Direito que garanta direitos, ainda sim, a violência mítica subsiste.
No seu artigo Mito, Direito e Justiça em Walter Benjamin (2020), a filósofa suíço-brasileira Jeanne-Marie Gagnebin entende que Benjamin tentava mostrar a dialética relação entre mythos e lógos inerente ao próprio Direito: “Essa ilusão repousa, diz Benjamin, na confusão funesta entre ‘reino da justiça’ e ‘a ordem do direito’, esquecendo-se de que a justiça cabe somente a Deus enquanto o direito é instauração humana do poder (Macht) e, portanto, sempre manifestação de violência (Gewalt). Assim, “em vez de pensar que o direito teria como tarefa punir uma culpa perpetrada por um infeliz indivíduo, Benjamin defende a ideia de que o direito cria culpa para poder puni-la e manifestar assim sua própria força (Gewalt)”.
Para finalizar este ensaio, cito um outro importante intérprete contemporâneo de Benjamin, que expande ainda mais nosso horizonte de leitura deste teologia-jurídica sobre o Direito, quando se debruça em outro bastante famoso processo. O filósofo italiano Giorgio Agamben entende que O processo, de Kafka, traz o modo como processo judicial, a calúnia e a punição, estão em íntima relação com o objetivo final de todo processo: a confissão, e sua manutenção enquanto máquina antropogênica e acusatória. E esta relação, diz Agamben, é própria do mistério do processo, aliás, mais ainda, do Mysterium burocraticum: “[O homem] [n]ão deixa, enfim, de acusar-se e de alegar inocência, de declarar-se, tal como Eichmann, pronto a enforcar-se em público, e, todavia, inocente perante a lei” . Enfim, satânico mesmo não são as bruxas, suas práticas. Satânico é quem acusa e quem esquece o mistério da verdadeira ficção num processo contra as bruxas: o Direito.
Ricardo Evandro Martins é doutor em Direito e professor da Universidade Federal do Pará. Está no Instagram.