Bemdito

Peguei olhos emprestados: ainda sobre queimar-se

A importância de relações sólidas (e especiais) para sobreviver à síndrome de burnout
POR Simone Mayara

Na sequência de textos sobre a síndrome de burnout a proposta é trazer a visão de quem está em tratamento. O objetivo aqui é que outras pessoas entendam para nem deixar a vida chegar a isso. No primeiro falei sobre o choque do diagnóstico e o que é a doença, que corriqueiramente nas conversas eu trato como “monstrinho” ou “essa praga”. Como podem ver, estou tratando mas sigo brigando muito com a tal síndrome.

Recebido o diagnóstico como em toda patologia, como tratar? A doença mental é complexa tanto em sua identificação quanto tratamento porque envolve sua vida. Uma dor de dente pode te impossibilitar de algumas coisas, talvez seja necessário evitar um ou outro alimento mas o tratamento envolverá um escopo não tão grande de coisas da sua vida. No caso dos transtornos de ansiedade, velhos amigos, e aqui especificamente a síndrome de burnout, o tratamento mexe com cada canto da sua vida. A medicação, com assistência de um bom médico psiquiátrico, é necessária para equilibrar. O acompanhamento terapêutico também. Mas também são fundamentais: a boa alimentação para garantir o equilíbrio das vitaminas e minerais que vão garantir a melhora das suas sinapses cerebrais e a atividade física que, além de melhorar na endorfina, colabora para a autoestima e socialização.

E tem o fator social, esse está sendo tão importante no meu tratamento que me vale um texto todinho só para ele. No dia seguinte ao diagnóstico, fui conversar com o padre que é meu diretor espiritual. Uma espécie de terapia mas o embasamento é milenar e transcendental. Apresentei a questão e depois de muitas horas de conversa ele deu um dos conselhos que mais me tocou em todo esse período e quiçá, na vida: seus olhos estão doentes. Use os olhos de quem te ama pra se enxergar.

Esse conselho é muito muito profundo e deve ser visto sem romantização. Não estou alando de colegas, nem de pessoas que dizem o que você quer ouvir. Muito menos de uma multidão. Estou falando de quem te ama: quem está ao seu lado em qualquer lugar, conhece o seu pior e ainda assim te ama e diz o que você precisa ouvir. Não o que você quer. Me desculpem os fãs do mundo líquido. Acredito demais que as pessoas são sólidas e precisam de um apoio sólido. Relações assim não são fáceis de construir, paciência. Mas no meio do furacão, eles ajudaram a me lembrar de mim.

Na verdade, os olhos deles já estavam em uso há algum tempo. Meus amigos avisaram sobre como o meu comportamento não estava saudável e sobre como elementos da minha rotina naquele momento estavam me dragando para o furacão. Publicamente peço desculpa: ouvi, mas não resolvi a tempo. Quando você chega à crise, episódio que para mim coincidiu com o diagnóstico, você já se queimou por completo. É um esvaziamento. Você literalmente não é você ali. Os olhos dos amigos me serviram para me lembrar que estar doente não é fraqueza. E diferente da autoridade de ouvir isso de um médico, ouvir de quem te ama te ajuda a ir lembrando isso. No furacão você não acredita, mas quem te ama fala até você acreditar.

Por ser uma doença muito relacionada ao trabalho, e comumente estar associada a um ambiente de trabalho estressante e não saudável, ela também te faz duvidar das suas capacidades e até acreditar que de alguma forma é culpa sua estar ali. Para quem está fragilizado, mesmo  uma imputação falsa é motivo de auto depreciação. E nessa hora quem te ama e sabe quem você é vai te lembrar exatamente do que importa. Também vai entender que você anda sumido e, principalmente, que em algum momento você vai precisar largar tudo e ir embora.

Um dos sintomas que fui guardando até explodir na crise maior foi o desconforto imenso de estar em alguns lugares. Simplesmente querer ir embora, ou ainda nem ir. O cansaço e a eterna sensação de angústia são os culpados. Pelos olhos de quem se ama falar “não” fica mais fácil. Não ir e, indo não querer ficar foi um exercício enorme para mim. Mas quem te ama diz: eu entendo. Eu sei. Quando você quiser nos encontramos. Quem te ama respeita seus limites.

Outra coisa que descobri, usando os olhos dessas poucas pessoas, é que quem te ama te vê como você poderia ser e não como está. A certeza deles de que aquilo era fase e que coisas muito melhores estavam prontas para mim se cuidasse da doença foi fundamental. Eu não acreditei em mim, eu acreditei no que eles me disseram. E se acreditar em quem não ama pode te levar pro buraco, acreditar em quem te ama ajuda a sair.

Para além do burnout, dou um conselho: tenha relações sólidas. Com gente sólida. Não fiz muito nessa vida mas um punhado de boas amizades construí. Esse é um valor que foi passado pela minha família e nessa situação entendi perfeitamente a importância.  Às vezes, você não será o suficiente. E são esses olhos, mãos e abraços que você vai usar. 

Simone Mayara

Analista política, é especialista em Direito Internacional e Mestre em Direito Constitucional e Teoria Política. Atualmente é sócia na consultoria de diplomacia corporativa Think Brasil.